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Registros de intolerância religiosa disparam no Grande ABC

Até julho deste ano, número de casos é quase o dobro do observado nos doze meses de 2018

Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
28/10/2019 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


 Pai Nelson de Iemanjá é babalorixá no Ilê Axé Nochê Abê Manjá Orubarana, casa de candomblé que existe há 56 anos no Jardim Arco-Íris, em Diadema. Nos últimos anos, o terreiro tem sido alvo de ataques de intolerância religiosa. Pessoas que passam e jogam sal grosso, azeite ou enxofre; grupos que se organizam para entregar panfletos de suas igrejas na mesma data e horário das festas religiosas realizadas na casa de candomblé. Nelson Freitas da Silva, 57 anos, nunca registrou boletim de ocorrência. “Não quero saber de problemas”, explicou.

Se tivesse feito queixa sobre os ataques, Pai Nelson integraria a estatística que mostra que os boletins de ocorrência por intolerância religiosa registrados nos primeiros sete meses do ano correspondem a quase o dobro do total de casos declarados à Polícia Civil no ano passado. Os dados são da SSP (Secretaria de Segurança Pública) do Estado de São Paulo e foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.

Apesar de os BOs não determinarem a religião das vítimas, os números de 2018 do Disque 100, serviço do governo federal para denúncias de violação aos direitos humanos não deixa dúvidas: 30% dos ataques são cometidos contra praticantes da umbanda, candomblé e/ou religiões de matriz africana.

Dirigente espiritual umbandista e presidente da Fucabrad (Federação de Umbanda e Cultos Afro Brasileiros de Diadema), Cassio Ribeiro lembrou a fala do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que defendeu a escolha de um ministro para o STF (Supremo Tribunal Federal) “terrivelmente evangélico”. “Isso dá um empoderamento para que os intolerantes coloquem a sua fé acima das outras”, afirmou.

Professor na Universidade Metodista de São Paulo, teólogo e especialista em filosofia, Denis Souza também apontou que a influência do pleito presidencial e do discurso pautado na “onda conservadora”, aliada ao fundamentalismo religioso, fomentou a disseminação de intolerância e discriminação de minorias, inclusive as religiosas.

Professora e especialista em direito das diversidades, Ingrid Limeira destacou que, além do avanço do discurso de ódio no atual governo, houve o que chamou de “destruição das políticas públicas de prevenção e educação em respeito, direitos humanos e cidadania”. A especialista criticou o grande número de queixas ao Disque 100 que não apresentam a religião da vítima. “Quantificar os diferentes tipos de agressão faz com que o Estado consiga trabalhar dentro das especificidades de cada vítima”, concluiu.

Para Souza, a escola pública deve ser agente promotor da igualdade em meio às diversidades. Babalorixá, professor universitário e especialista em semiótica e linguística, Sidnei Nogueira enfatizou a necessidade de educação que respeite todas as crenças.

Casos estão relacionados ao racismo
A maioria das vítimas de intolerância religiosa é adepta da umbanda, candomblé e/ou religiões de matriz africana. Para além da questão de crença, especialistas apontam que os casos estão diretamente relacionados ao racismo. O babalorixá, professor universitário e especialista em semiótica e linguística Sidnei Nogueira chamou os crimes de “racismo religioso”, uma vez que, na sua avaliação, há ligação direta ao racismo contra as origens pretas das religiões.

Nogueira afirmou que “a intolerância é branca, eurocêntrica, cordial e não criminosa”. Na sua avaliação, quem persegue as religiões de matriz africana o faz por causa do racismo estrutural. “É um racismo simbólico que qualquer pessoa que estiver vinculada a algo preto será perseguida. E as pessoas têm muita vergonha de se dizer de umbanda e candomblé, por isso, desses 51% cuja religião não foi identificada nos dados do Disque 100, pelo menos 40% dos casos são contra religiões de matriz africana”, afirmou.

Professora e especialista em direito das diversidades, Ingrid Limeira pontuou que nem todas as religiões sofrem de maneira igual com a intolerância. “Sabemos que para o candomblé o racismo é o principal ponto do que se entende por intolerância. Para os muçulmanos, a xenofobia é o que pesa mais. Para quem não professa nenhuma religião, como os ateus, eles são agredidos em suas personalidades ou comprometimento de cidadania”, relatou.

Para Nogueira, o enfrentamento a essa situação passa, além da questão da educação, pela separação no Estado do que é de âmbito público e âmbito privado. “Precisamos efetivamente que o poder público se posicione severamente e duramente contra esse estado de privatização religiosa de instâncias públicas e de uma Justiça que seja antirracista, antimisógina, antissexista, que não tenha um lado religioso”, finalizou.

Há mais de 50 anos, santuário em Santo André é meca dos umbandistas
Na cava da antiga Pedreira Montanhão, localizada na divisa entre Santo André e São Bernardo, Ronaldo Antonio Linares, 85 anos, criou o primeiro santuário da Umbanda do País. Conhecido como a “meca dos umbandistas”, o espaço de 645,8 mil m² reúne mais de 100 tendas de umbandas, além de outras 50 tendas de aluguel, e oferece infraestrutura e segurança para que os adeptos da umbanda possam fazer suas práticas religiosas. Estátuas e monumentos em homenagem aos orixás estão à disposição dos frequentadores para realização de trabalhos e oferendas.

No fim da década de 1960, Pai Ronaldo ia à pedreira para fazer entregas ao seu orixá, Xangô, quando resolveu recuperar o local. Conseguiu autorização da administração municipal de Santo André e, com o apoio de outras pessoas, começou a reflorestar o espaço. Desse esforço e da união dos umbandistas, além do santuário, nasceu a Federação Umbandista do Grande ABC.

Pai Ronaldo conheceu em 1970 o médium Zelio Fernandino de Moraes (que fundou a Umbanda em 1908), e relatou emocionado que, quando chegou até ele querendo saber mais sobre a religião, o médium já sabia quem ele era. “Quando liguei e a filha dele atendeu e perguntou se eu podia ir visitá-lo, ele disse: o Ronaldo vai nos ajudar a tornar a nossa religião conhecida. É por isso que fiz tudo isso e continuo aqui”, concluiu.




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