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Ásia Central: mosaico de povos
Aleksandar Jovanovic
Especial para o Diário do Grande ABC
13/10/2001 | 17:26
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O conflito do Afeganistão traz para o cotidiano do mundo um cenário complexo de várias centenas de povos e línguas superpostos na Ásia Central, numa sucessão pouco conhecida de nomes e relação, por vezes, incompreensível de fatos e locais.

Com pouco mais de 23 milhões de habitantes, somente o Afeganistão conta com nada menos que 49 grupos etnolingüísticos, muitos dos quais também estão espalhados nos países vizinhos.

Há 2,5 mil anos, parte do país constituía a Média, conquistada pelos persas de Dario e Xerxes. Mais tarde, seria helenizado por Alexandre, o Grande, e, no fim do primeiro milênio de nossa era, acabou por ser islamizado, a exemplo do que ocorreu com as vizinhas ex-repúblicas soviéticas, com os povos túrquicos da província chinesa de Xinjiang e com as nações que viviam no Paquistão e Irã.

A islamização legou a esses povos, na maioria dos casos, variedades do alfabeto árabe em que suas línguas são escritas. Todavia, seria errôneo imaginar que a fé muçulmana tenha apagado as especificidades da longa história particular de cada uma dessas nacionalidades.

Muitos dos povos e línguas da Península Índica, do Irã, do Cáucaso e da Ásia Central pertencem ao chamado grupo indo-europeu, integrado também pela esmagadora maioria dos povos da Europa. Existem semelhanças estruturais fortes entre todas essas línguas e culturas. No Afeganistão, um dos povos mais numerosos (seis milhões de pessoas) é representado pelos falantes do farsi (ali conhecido em sua variedade chamada dari), que também é a língua oficial do Irã (e língua materna de pelo menos 25 dos 65 milhões de iranianos) e língua materna de pelo menos 12 milhões de paquistaneses. Nada menos que oito milhões de pashtuns estão concentrados na faixa Centro-Sudeste do Afeganistão; no vizinho Paquistão, são 12 milhões que se espalham, inclusive ao longo da fronteira, e representam um grupo compacto e solidário.

No Irã, há algumas centenas de milhares deles na fronteira com o Afeganistão. É interessante lembrar que as grandes manifestações de solidariedade ao Talibã têm sido protagonizadas, em boa parte, pelos pashtuns paquistaneses.

Os hazaragis constituem pelo menos 9% da população afegã, mas também existem numerosos grupos no Irã e no Paquistão. Os tadjiques, concentrados no Norte-Nordeste afegão, representam, no mínimo, 10% da população, localizados na zona fronteiriça com o Tadjiquistão, onde são o grupo majoritário; cabe lembrar, contudo, que existem minorias tadjiques na China ocidental. O povo domari – 500 mil no Afeganistão, espalhados em diversas áreas – vive também nos vizinhos Turcomenistão e Uzbequistão; no Irã, seguramente há também meio milhão de domaris. Por outro lado, os baluchis são 200 mil no Sudeste do Afeganistão, mais de 1 milhão de pessoas no Paquistão Ocidental e 800 mil no Sudeste do Irã. Os aimaqs – prováveis 500 mil cidadãos afegãos – vivem ainda no Irã e Tadjiquistão.

Dentre os povos de língua turca, os uzbeques são os mais numerosos no Afeganistão – 1,5 milhão de pessoas concentradas na região norte, na fronteira com a ex-república soviética do Uzbequistão, onde constituem maioria.

Os uigures, em contraste, são poucos milhares na região Nordeste, mas representam constante pesadelo para o governo de Pequim, porque há algumas dezenas de milhões deles – muçulmanos, não-chineses – na província de Xinjiang (outrora conhecida como Turcomenistão Oriental), e são grupo minoritário no Cazaquistão, Turcomenistão, Irã, Quirguistão, Paquistão e Tadjiquistão. Os turcomenos – etnia majoritária do Turcomenistão – são 1 milhão no Irã e 500 mil em território afegão, concentrados numa área fronteiriça nas regiões Norte-Noroeste, onde formam uma compacta mancha etnolingüística com seus vizinhos.

Alguns grupos etnolingüísticos são minoritários no Afeganistão, mas estão fortemente concentrados em países vizinhos, como é o caso dos azeris (grupo majoritário da ex-república soviética do Azerbaijão e importante minoria no Irã e Iraque) ou os karakalpaks, que são nada menos de 400 mil cidadãos do Uzbequistão. Os cazaques – maioria da população da ex-república soviética do Cazaquistão – somam pelo menos 1 milhão de pessoas na China Ocidental, e representam grupos minoritários dentro do Afeganistão e do Irã. Já a nação brahui – pertencente à família de povos e línguas dravídicos (maioria no Sul da Índia e parte da população de Sri Lanka) – totaliza 200 mil habitantes em território afegão, mas bem mais de 1,5 milhão no Paquistão.

Rupturas – A própria história conturbada da Ásia Central e Península Índica encarregou-se de criar rupturas de cicatrização difícil. Basta lembrar que, depois da independência da Índia, no final dos anos 40 do século 20, o Paquistão separou-se às custas de guerras: o pomo da discórdia residia, e reside ainda, no fato de que os indianos são ou hinduístas ou budistas e os paquistaneses, muçulmanos. Todavia, a língua oficial do Paquistão – o urdu, língua materna de pelo menos 54 milhões de pessoas – é o mesmo idioma chamado de hindi, na Índia (língua materna de cerca de 180 milhões de indianos). E para complicar mais as coisas, existem minorias falantes de urdu em território afegão, a exemplo do que acontece com o grupo sondi, minoria no Afeganistão, mas um grupo compacto de 17 milhões de pessoas no Paquistão e 3 milhões na Índia.

O difícil equilíbrio a ser obtido nos países que cercam o palco da primeira trágica guerra do século 21 apresenta uma equação com 66 povos no Paquistão, 68, no Irã, uma dezena no Tadjiquistão, Turcomenistão, Cazaquistão e Uzbequistão. Um governo de coalizão que possa substituir o grupo encabeçado pelo Talibã precisa obter, necessariamente, a bênção da Loya Jorga, ou seja, do conselho de anciãos das 49 nações do Afeganistão. A Aliança do Norte, que combate o governo de Cabul, não possui credenciais para tanto porque a maioria dos combatentes é integrada por tadjiques – uma etnia minoritária do país, porém dominante no vizinho Tadjiquistão.

Assim, ao longo dos últimos 20 anos, a guerra civil afegã tem sido, em grande parte, uma luta entre as diversas etnias de um país em que o poder vem sendo partilhado, basicamente, por pashtuns e falantes do farsi.

Para complicar a delicada situação geopolítica, Índia e Paquistão (potências nucleares, é bom lembrar) estão envolvidas há dezenas de anos na disputa pela província da Caxemira (hoje acoplada à Índia), de maioria muçulmana. Os falantes da língua kashmiri são minoria de 100 mil pessoas no extremo Norte do Paquistão, um grande grupo de 4 milhões, na Caxemira. E o estreito território afegão, que penetra como sinuosa linha entre os territórios da China, Paquistão e Tadjiquistão, possui densa minoria uigur – um povo turco hostil ao regime de Pequim, que deseja independência política e olha com desconfiança para o Paquistão, mas contempla com simpatias o Quirguistão, de língua e povo similares.

Sem uma familiaridade profunda com as centenas de povos e línguas envolvidos nos inúmeros conflitos da região, as potências ocidentais podem repetir – talvez agora com riscos inimagináveis para o planeta – os erros dos governos coloniais britânicos no século 19. Exemplo evidente é o fato de que o atual presidente do Irã é um curdo (grupo minoritário no país, mas integrado à vida institucional), povo perseguido a ferro e fogo no Iraque. Na Turquia, as sistemáticas tentativas de literal extermínio dos curdos resultaram na organização do PKK, partido extremista e nacionalista, que tem evidentes simpatizantes nos vizinhos Turquia e Iraque.

Não é muito diferente na guerra do Afeganistão, onde as fronteiras oficiais representam muito mais traços sobre mapas do que a realidade de territórios compartilhados, cobiçados ou rechaçados por povos e nacionalidades com forte senso de identidade etnolingüística.




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