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Comércio da região respira história
Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
31/07/2005 | 07:46
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Teve uma época em que o Grande ABC cabia dentro de uma letra. A região resumia-se a São Bernardo. A indústria era incipiente. Os carros contavam-se nos dedos. O transporte coletivo fazia-se por jardineiras trepidantes e táxis com capota de lona.

No Salão da Sociedade Italiana, a comunidade reunia-se para ouvir a banda Carlos Gomes, sob a regência do maestro Attilio Miéle. Falava-se que a construção de uma avenida (mais tarde, chamada de Faria Lima) acabaria com as enchentes na região. De vez em quando, aterrissava uma novidade inesquecível. Às vezes literalmente, como o gigantesco dirigível Graf Zeppelin, que apareceu em São Bernardo nos anos 30.

As pessoas eram mais simples e menos exigentes. Aos domingos, a diversão era o futebol de várzea durante o dia e o cinema, à noite. Ainda não havia TV, nem computador, internet, fax, celular, câmera digital. Espaçonaves, satélites, raio laser eram reserva especial das histórias em quadrinhos. Os raros que possuíam telefone precisavam apelar para a telefonista, a encarregada de repassar as ligações.

Nessas condições limitadas, surgiam as primeiras casas comerciais. Algumas delas existem ainda hoje, muitas nas mãos das mesmas famílias que as inauguraram há décadas.

Esse pessoal heróico sobreviveu a planos econômicos desastrosos, a políticos de moral carcerária, ao maremoto das inflações e à turbulência governamental. É um pessoal que paga as contas e a pilha de impostos em dia; e se orgulha de não ter em seu passado um título protestado, um único cheque devolvido por falta de fundos, ainda que, hoje em dia, pouca gente dê importância a valores dessa estirpe.

Uma das mais antigas lojas da região, uma legítima sobrevivente das intempéries econômicas da história brasileira, é a Sedanossa (rua Senador Flaquer, 26 e 32, Centro de Santo André), do comerciante Sadalla Melhen.

Seu proprietário cumpre uma rotina religiosa. Acorda às 7h. Depois da higiene pessoal, que inclui a barba feita diariamente, come frutas, banana com aveia e toma café com leite. Vestido com camisa, calça e sapato social, ele sai de casa às 8h30. Chega 15 minutos depois diante de sua loja. Os empregados já estão na porta, esperando. Sadalla, um brasileiro de origem libanesa, ergue as portas e prepara-se para mais um dia de trabalho. "Faço tudo igual há 62 anos. Com a graça de Deus."

Sadalla nasceu há 82 anos no largo do Ipiranguinha pelas mãos da parteira dona Nina. O pai queria que ele fosse dentista, mas o apelo do comércio era mais forte. Tinha 20 anos quando montou sociedade com Anselmo El-Bredy, uma união que duraria 26 anos, até o falecimento de Anselmo. Do casamento com dona Nair, que já dura 56 anos, nasceram dois filhos. Quis o destino que ambos fossem dentistas, como queria o velho Salim, pai de Sadalla.

Como em seus primórdios, a Sedanossa vende tecidos finos: seda, crepe, chanel, organzas, linhos. A loja foi aberta no dia 12 de junho de 1943.

No Dia dos Namorados?

"Não, senhor. Naqueles tempos, nem Dia dos Namorados existia."

A Sedanossa surgiu em meio à Segunda Guerra Mundial. As pessoas desencorajavam Sadalla e seu sócio. "Vocês são loucos? Abrir um negócio em plena guerra?". Os dois foram em frente, sem ligar para o blecaute e o racionamento. A Sedanossa tinha uma única porta. Com o tempo, as instalações seriam ampliadas. A Sedanossa ganhou nome e fama. Viu muita gente quebrar, mas também acompanhou o sucesso de outros tantos. Hoje, é a loja de tecidos mais antiga da região. A máquina registradora canadense National, que tocava uma espécie de sino toda vez que a manivela girava, não está mais lá. O telefone sem discador foi mantido como lembrança.

Qual é o segredo do sucesso, seu Sadalla? "Nunca trabalhar na base do fiado."

Low profile - Os americanos usam a expressão low profile quando desejam qualificar aquela pessoa que trabalha, com muita discrição, sem querer aparecer. Ninguém é mais low profile na região do que Lídia Lazzuri, 77 anos, atualmente no comando do Bazar Olga Aviamentos e Armarinhos (rua Marechal Deodoro, 1.071, São Bernardo).

Irmã da fundadora do bazar, Lídia tem horror de dar entrevista, posar para fotos, aparecer de alguma maneira. "Quero ficar aqui, atrás do balcão, onde passei toda a minha vida."

Segundo o dicionário, armarinhos é a loja onde se vendem tecidos, material de costura e "atavios femininos". Já aviamentos significa "botões, fechos, colchetes, tecidos para forro".

O Bazar Olga é uma das mais antigas lojas comerciais da Marechal Deodoro. A fundadora, Olga, tem 87 anos e aposentou-se. A irmã dela, Lídia, disse que o bom da profissão é o contato com a freguesia: "Se um dia parar, vou sentir falta". Em seguida, vem o arrependimento de falar com um jornalista: "Já falei demais. Me deixa em paz aqui no meu cantinho..."




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