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‘33’ é documentário noir
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
10/03/2004 | 20:32
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Aos 33 anos, em 2001, Kiko Goifman decidiu procurar sua mãe biológica. Com um bilhete como pista e o ano de nascimento de sua mãe adotiva, 1933, Goifman estabeleceu o prazo para chegar a uma conclusão da procura: 33 dias. O filme 33 mostra essa investigação, um híbrido de documentário e ficção, no qual o próprio documentarista é personagem da ação que ele próprio documenta, como narrador em off e diante da câmera. A inspiração está nas histórias de detetives, na atmosfera do film noir – por isso foi realizado em preto-e-branco – e nos road movies. O suspense leva o espectador até o fim, no 33º dia: Goifman encontra a mãe? 33, favorito do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ano passado, não tem paralelo com a idade de Cristo quando morreu, pois o diretor foi adotado por uma família judia, nem é piadinha com o jargão médico para auscultar pulmões.

A investigação de Goifman, diretor e personagem de 33, é estética e pessoal. Seu trabalho reflete um tendência de produções desse gênero: trazer questões pessoais para a tela, dramáticas, banais ou cotidianas que sejam. Mas não pense que o trabalho reflete os quadros mais piegas da TV, que exploram o tema de famílias se reencontrando depois de longo tempo. Goifman foge disso.

33 é um híbrido. O gênero documentário, em tese, procura mostrar a verdade de uma situação estanque a partir de pesquisa pré-elaborada. As entrevistas recolhidas são, ainda em tese, pouco contestadas em seu processo, tendendo o documentarista a ser condescendente com o entrevistado. A ficção, por sua vez, é uma narrativa sobre um personagem que busca um objetivo.

Goifman segue uma investigação documental como personagem de uma história pessoal. Durante seu trabalho, usou os recursos disponíveis para um detetive contemporâneo investigar: enquanto estava em realização, 33 foi assunto de jornais e programas de TV. Goifman manteve um diário on line na internet em busca de pistas. Recebeu pistas, muitas falsas, e consultou detetives em São Paulo pedindo dicas. Entrevistou sua mãe adotiva, Berta, que deu todas as informações e até se envolveu com o trabalho. Finalmente chegou a Belo Horizonte, onde nasceu e onde foi adotado. Ouviu a babá, Conceição, que é cartomante, e a tia, Eva, cada uma com versões diferentes da história.

A partir de conversas com detetives em São Paulo, Goifman começou a ser um “desconfiado compulsivo”. Com isso, duvidava até das respostas que obtinha de sua família, mesmo sabendo que nada do seu passado havia sido escondido, embora fosse um assunto tabu. Contrapondo versões diferentes de sua adoção – a babá, que disse que a tia viu de relance sua mãe biológica; e a da tia, que disse que foi conhecê-la pessoalmente – surgiu no documentário uma rede de intrigas em família.

As entrevistas bem-humoradas com detetives em São Paulo e Belo Horizonte, formados por correspondência, que anunciam serviços em jornais, e que demonstram uma capacidade infinita de agradar o cliente, tenha ele o caso que for, acentuam a fusão entre ficção e realidade temperada com humor. Um deles filosofa sobre a passionalidade humana, vaticinando que “pobre mata, classe média sai na porrada e rico precisa de detetive”. Outro, no melhor espírito araponga, conclui que, “se o peixe morre pela boca, o ser humano morre pelo telefone”.

Os dias correm, poucas pistas surgem, e o prazo de 33 dias tem de ser respeitado. A babá cartomante dá a dica final: as cartas dizem que Goifman encontrará sua mãe. A dica de um detetive em São Paulo é seguida à risca: tenha uma carta na manga em sua investigação. O fim justifica o meio de busca? “Os meios da busca são mais importantes que o fim”, responde Goifman.

Film noir – 33 promove o inédito encontro entre documentário e o gênero film noir, característico do filmes de detetive norte-americanos dos anos 40. “Foi um desafio como documentarista por ser extremamente aberto. Ainda bem que havia um prazo final. A produção só estava preparada para esses 33 dias, o que me dava base para cálculos mínimos. Sem o prazo, eu teria uma encrenca nas mãos, e poderia virar uma sucessão de viagens para as quais não estava preparado, caso as pistas levassem a cidades do interior por exemplo”, disse Goifman.

O resultado é um pouco de road movie em um documentário noir, que alterna distanciamento e emoção. “É noir pela construção de uma atmosfera, poucas luzes, e o sentimento de solidão. E afeta o espectador de uma forma não vista antes em documentários, pois leva em conta o suspense, como na ficção”, afirma.

Durante a busca, Goifman lia e relia histórias de detetives. Tem paixão por Dashiell Hammett, autor da frase que abre o filme: “Sou uma das poucas pessoas comedidamente letradas que leva histórias de detetives a sério”.

Principalmente James Ellroy, autor do que pode ser chamado de o livro de cabeceira de 33, Lugares Escuros, no qual o detetive busca entender o assassinato de sua mãe, e textos de Paul Auster, pela capacidade do autor em abordar temas pessoais. Outro autor de cabeceira é o espanhol Manuel Vásquez Montalbán, criador do detetive gourmet Pepe Carvalho, que em O Quinteto de Buenos Aires, faz uma busca por um primo desaparecido, a quem nunca viu antes.

Pistas para se chegar ao fim da investigação estão no site www.33ofilme.com.br. Se você cometer pequenos delitos, como desobedecer avisos de “não clique aqui”, chegará ao diário on line da produção, interrompido exatamente no 33º dia, com a solução do caso. Ou então, veja o filme.

Antropólogo formado na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), especializado no estudo da vida nas prisões, e mestre em Multimeios na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Goifman é co-diretor da produtora PaleoTV, que desenvolve sites de filmes brasileiros (Cidade de Deus e Carandiru, por exemplo). Ano passado, com o outro co-diretor da PaleoTV, Jurandir Muller, Goifman dirigiu Morte Densa, documentário sobre crimes passionais, pessoas comuns que mataram uma única vez. A parceira já havia rendido o livro e CD-ROM Valetes em Slow-Motion, que trata de detentos e da passagem do tempo na prisão, e Olhos Pasmados, primeiro lugar na Mostra de Vídeo Brasileiro de Santo André em 2001, sobre os problemas da velhice.

Em fase de captação de verba, o novo projeto de Goifman é um longa sobre sobreviventes de massacres brasileiros nos últimos dez anos, como Carandiru, Eldorado dos Carajás, Candelária e asilo Santa Genoveva. “Estou interessado em dirigir documentários nos quais seja impossível fazer making of, sendo ele próprio um making of. Quero fazer filmes sobre ações nas quais eu me proponho agir”, afirma.




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