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Sílvio Lancellotti - A nobre arte da mortadela
Por Especial para o Diário
27/01/2008 | 07:10
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Mestres pioneiros na confecção dos embutidos, dos salames e dos seus correlatos, muito antes de os alemães desenvolverem as salsichas, nos idos de Cristo os romanos perpetravam um grande bolo de carne apiloada de porco, aromatizada com mirtilos, ou frutinhos silvestres, tudo bem embrulhadinho na própria bexiga do animal. Chamavam o seu produto de Farcimen Mirtatum. No processo de esmagamento, utilizavam um equipamento de metal, batizado de “mortaio”. Claro que nasceu dessa peculiaridade o nome Mortadella.

A iguaria se oficializou em Bolonha, a capital gastronômica da Itália, em um documento de 1376. Posteriormente, no século 17, uma polêmica assombrou a cidade. Acossado pelas reclamações de produtores conscientes que, então, sofriam com as imitações perigosas, em 1661 o cardeal Ranuccio Farnese reuniu um grupo de especialistas e baixou um édito crucial: no texto, se estabeleciam as regras fundamentais de feitura da maravilha, normas que se perpetuaram até a atualidade.

Claro, mesmo por lá existem algumas variações da receita basilar: mas, pelo édito de Farnese, só pode exibir, em seu rótulo, o dístico de Mortadella di Bologna, a iguaria que seguir aqueles princípios.

Composição - Essencialmente, a formulação leva 85% de carne de porco, hoje moída, e 15% de gordura suína em cubinhos. Por ser mais branca, quase translúcida, e mais rija, se usa a gordura do pescoço do bicho. As variações ficam por conta da condimentação – delicadíssima, porém. Sal, pimenta-do-reino, toques de coentro e de noz moscada, eis os temperos comuns. Os regulamentos ainda aceitam enriquecimentos, dos mirtilos dos romanos aos pistaches importados da Ásia Ocidental.

Devidamente comprimida, a massa atravessa um cuidadoso procedimento de cura em etapas diferentes: da estufa úmida a uma espécie de sauna seca. Em qualquer circunstância, a temperatura da forma não pode cair abaixo dos 75 graus. Numa fase derradeira, os volumes, em geral cilíndricos, de grande porte, recebem uma ducha vigorosa de água gelada e se acomodam em longas câmaras de resfriamento, onde amadurecerão e se estabilizarão.

Claro, regionalmente, engenhosos artesãos bolaram outros tipos de mortadela: em Prato, na Toscana, vizinha à Emília-Romagna de Bolonha, se incorpora o alho. Em Amatrice, nos Apeninos, norte do Lácio, além da cura normal, também se recorre a um período de defumação.

Mais, a maravilha, obviamente, se espraiou fora da Itália. Em Portugal e na Espanha a massa contém naquinhos de azeitonas. Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a proporção de gordura desaba a quase zero. No Brasil desde 1924, um certo Giovanni Ceratti, adequadamente nascido, em 1897, na vila de Castelmassa, fronteira do Vêneto com a Emília-Romanga, em São Paulo fundou, em 1932, o seu frigorífico. Agora em Vinhedo, o frigorífico do saudoso Seu Giovanni tem uma capacidade de produção de cerca de 150 toneladas em cada dia.

Ingrediente obrigatório do recheio dos tortellini, os cappelletti clássicos de Bologna, a mortadela não serve, apenas, para esse consumo indireto, e nem para abrilhantar os sanduíches das melhores padarias. Não. Existem infinitas alquimias em que fulgura como protagonista, conforme provam as duas por mim apresentadas neste domingo – junto, como sempre, das informações nutricionais e das curiosidades de plantão.

Receitas

SALADA MORNA DO IMIGRANTE
Ingredientes, para uma pessoa: Azeite de olivas, de preferência extra-virgem. Aceto balsâmico. Sal. Orégano. 12 rodelas, bem fininhas, de palmito de pupunha. 4 fatias, bem fininhas, de tomate-caqui. 8 palitos de mortadela, sem a casca, com 5mm de lado e 5cm de comprimento. Pimenta-do-reino.
Modo de fazer: Numa terrina rasa em que caibam o palmito e o tomate, combino três partes de azeite, uma de balsâmico, o sal e o orégano a gosto. Deixo que o palmito e o tomate se marinem, nesse banho, de oito a dez minutos – quanto mais calor, no ambiente, menos tempo de molho. Paralelamente, em mais um pouco de azeite já aquecido, numa frigideira, douro, por trinta segundos, ou até que mudem de cor, os palitos de mortadela. Retiro, escorro, deposito em papel absorvente. Também retiro, e escorro, o palmito e o tomate. Deposito o palmito no fundo de um prato. Por cima do palmito, disponho o tomate. Sobre o tomate, coloco os palitos de mortadela. Completo o topo com a pimenta-do-reino.

MORTADELA GRELHADA DO SL
Ingredientes, para uma pessoa: Azeite de olivas. 1 quadrado de mortadela, cerca de 10cm de lado por 1cm de espessura. 4 colheres, de sopa, de vinho branco, bem seco. A casca de 1/2 laranja-da-bahia, cortada em tirinhas. 4 colheres, de sopa, de geléia de laranja. Algumas folhas de alecrim.
Modo de fazer: Unto o fundo de uma frigideira com azeite de olivas. Aqueço muito bem. Douro o quadrado de mortadela, um minuto de cada lado. Paralelamente, em uma caçarola, levo o vinho à fervura. Diminuo a chama ao mínimo possível. No vinho, amolengo as tirinhas de casca de laranja. Agrego a geléia e as folhas de alecrim. Viro e reviro, por sessenta segundos – ou, o tempo suficiente para que a geléia comece a se diluir. No centro de um prato, deposito o quadrado de mortadela. Cubro com o molho de laranja. E enfeito com mais alecrim.

Observação: Compre uma robusta rodela de mortadela já com 1cm de espessura. Elimine a sua casca. Corte o quadrado na dimensão que eu peço na segunda das alquimias. Use as aparas para obter os palitinhos da primeira.

Curiosidades

QUALIDADES E ENERGIAS
Acredite, se quiser – mas, cem gramas de uma boa mortadela ostentam menos calorias do que um prato de macarrão. E o seu teor de colesterol não vai além dos 70 miligramas, exatamente como nas carnes brancas solicitadas pelas dietas, digamos, saudáveis. Melhor, a sua industrialização, a sua cura, e a sua maturação, não prejudicam a qualidade das suas proteínas nobres e das suas vitaminas, principalmente as do Complexo B. Rica em minerais como o Ferro e o Zinco, também funciona como um precioso catalisador das energias de quem exerce atividades físicas. De todo modo, ao comprá-la, solicite, só, a quantidade de que necessitar para um ou dois dias, de modo a evitar que a sua superfície endureça e se oxide. Acondicione protegidinha pelo papel-filme.

SOPHIA LOREN & ROMANO PRODI
Numa das comédias mais deliciosas da sua carreira, La Mortadella (de Mario Monicelli, 1971), a mágica Sophia Loren interpreta uma garota de Bolonha que, longos quatro anos depois de se separar do amante, um homem casado, emigrado aos Estados Unidos, decide reprocurá-lo. Como regalo de bem-querer, leva ao rapaz uma peça enorme da legítima maravilha da sua terra. Só que a aduana de Nova York não lhe permite que entre no país com o presente. Claro, uma briga inglória. Mortadela também é o epíteto com que a oposição agraciou Romano Prodi, ex-premiê da Itália e ex-presidente da Comunidade Européia, por causa da sua origem, Bolonha, e da suposta parecença da sua cabeça com um dos formatos da iguaria. Reação de Prodi: “Eu votaria numa boa mortadela...”



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