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A doutora que não quis atestar minha cegueira

Seria cômico se não fosse trágico, aliás, mais do que isso, traumático...

Por Carlos Ferrari
06/11/2013 | 07:00
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Seria cômico se não fosse trágico, aliás, mais do que isso, traumático. Já escrevi um dia neste espaço sobre o calvário que se sujeita qualquer pessoa com deficiência, que se arvora a pleitear algum direito.

A exigência de laudos e mais laudos, somada à burocracia que compõe o restante do processo, ainda por vezes agravada pela negação do médico em assinar tal documento, nos coloca como pedintes diante de direitos, que por décadas lutamos na perspectiva de nos ressignificar enquanto cidadãos, tendo por principais elementos transformadores a autonomia, e por consequência o exercício de nosso protagonismo.

Vamos então à minha história. Tenho tentado por meses um encaixe com um oftalmologista do SUS, pois, finalmente, depois de anos de luta, conseguimos estender os benefícios de isenção na compra de um carro novo também para pessoas não condutoras, no meu caso, pessoas cegas. Como estava contando, para tanto se faz necessário um laudo de um oftalmologista do SUS, também assinado pelo coordenador da unidade. Mesmo tendo amigos, e podendo tentar agilizar o processo, penso que este não seja o caminho e busquei, como cidadão, agendamento que em algum momento pudesse ser possível, diante de tamanha dificuldade com prazos para consulta e, ao mesmo tempo, que casasse com uma data que eu estivesse em São Paulo.

Finalmente o tal dia chegou. Às 7h10 passei pela assistente social, que com muita eficiência rapidamente fez o encaminhamento para a recepção. Lá, preenchi a ficha e às 10h22 fui chamado pela doutora. Com voz nervosa e de poucos amigos perguntou o que eu queria, e já completou “não é laudo não, né?”.

Tive, obviamente, que contrariá-la e furiosa ela afirmou que já havia dito a todos que não gostava de fazer isso.

Bem, resumo da ópera, ela iniciou o preenchimento e acabou no meio do caminho desistindo. Tenho aqui o nome, o CRM, e lhes confesso que em meio à minha indignação pensei também em publicar. Creio, porém, que não podemos personificar o debate. Como ela, temos muitos outros ‘doutores’, que simplesmente acham que não devem fazer o laudo, porque o usuário não tem cara de quem merece, ou mesmo porque acreditam que esse não seja um direito reclamável.

Assim, estou até aqui em compasso de espera. Fui até a ouvidoria, preenchi um formulário, e espero, em breve, trazer boas novidades para vocês neste espaço. Trouxe esse assunto para cá, não por conta de meu problema pessoal, mas sim por tantas outras pessoas que sofrem constrangimentos semelhantes. Sou cego desde que nasci, e de repente alguém me diz que não vai atestar tal situação. Surreal, não é?

A tal ‘doutora’ deve continuar aprontando das suas. Fiquei bastante tempo na unidade, depois do fato, tentando entender o que havia acontecido, e todos eram unânimes em dizer que essa era uma prática do dia a dia da figura.

O fato de ser conselheiro nacional de Saúde, ou mesmo de ser dirigente de entidades de luta de âmbito nacional e internacional, não pode em qualquer momento me botar em situação de privilégio. Quero que me seja assegurado o que é de fato de direito.

Viveu situação semelhante? Vai lá no meu blog, www.blogdoferrari.com.br ou no face www.facebook.com/professorferrari, e conte o seu caso.

Não dá para se calar diante de tamanha violência a nossa cidadania.

* Carlos Ferrari é presidente da Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), faz parte da diretoria executiva da ONCB (Organização Nacional de Cegos do Brasil) e é atual integrante do CNS (Conselho Nacional de Saúde). 




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