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Auxiliar de limpeza aprende a ler e a escrever durante a pandemia

Elisângela Morais, 37 anos, aproveitou aulas on-line e ajuda das filhas para realizar sonho

Bia Moço
Do Diário do Grande ABC
24/05/2021 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


 Ler e escrever. Essas ações simples são aprendidas nos primeiros anos de vida, ainda na pré-escola. No entanto, nem todas as pessoas vivem essa realidade, como é o caso da auxiliar de limpeza Elisângela Alves de Morais, 37 anos, que viu na pandemia oportunidade para aprender o que chama de “a arte da vida”.

Moradora do Parque João Ramalho, em Santo André, a última tentativa de Elisângela apreender a ler e escrever havia sido em 2016, quando se matriculou na EJA (Educação de Jovens e Adultos). Mas a vergonha, o medo e traumas do passado impediram sua evolução, até que no ano passado, com aulas on-line em razão da pandemia, Eli, como gosta de ser chamada, passou a entender a junção das letras.

A auxiliar largou os estudos ainda muito jovem por razões que preferiu não expor. “Parei de estudar aos 13 anos, por problemas pessoais. O trauma me causou espécie de apagão, como se eu nunca tivesse frequentado nem um ano de escola. Depois disso, passei toda minha vida, até o ano passado, vivendo no escuro”, contou Eli, emocionada.

A escolha de voltar para sala de aula não partiu dela. Mãe de Nathalia, 25, Ana Paula, 21, e Ana Carolina, 16, Eli foi incentivada pelas filhas a realizar o sonho de ler e escrever. “Nunca consegui fazer nada sem elas. Tinha de levar as meninas para tudo, porque não sabia ler, então era difícil fazer qualquer coisa simples, como ir ao mercado, ao médico e até mesmo pegar um ônibus”, contou.

Cansadas de ver o sofrimento da mãe e sabendo da vontade que ela tinha de retomar os estudos, as meninas começaram a forçar Eli, que trabalha em escola municipal de Santo André que oferece a EJA, a apostar nas aulas. “Relutei, porque tinha vergonha de voltar a estudar com essa idade. Tinha muito medo do que iam pensar, e também de assumir aos colegas de trabalho que eu não lia”, assumiu Eli.

A auxiliar conta que, no ano passado, decidiu “pegar firme” nas aulas on-line e aproveitar a presença das filhas em casa para focar nos estudos. “Comecei a ler em plena pandemia. Agora, neste ano, estou começando a escrever. Ainda tenho dificuldade, mas já avancei muito. As aulas remotas, pelo menos para mim, foram excelentes”, comemora. “Um dia quero trabalhar em escritório”, assumiu. “Eu saí do escuro, é como se agora visse luz na minha vida. Se eu pudesse incentivar as pessoas que não foram alfabetizadas, diria para que não tenham medo, porque é possível, não importa a idade”, finalizou Eli.

CENÁRIO NA REGIÃO
Conforme a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, até 2010, quando foi feito o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as sete cidades registravam 3,11% de moradores analfabetos, equivalentes a 69.009 pessoas com mais de 15 anos que têm dificuldades para ler e escrever – o estudo, que deveria ser realizado a cada dez anos nos cerca de 71 milhões de lares brasileiros, foi adiado em 2020 e 2021 devido à falta de recursos e à pandemia.

O último levantamento do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), feito em 2019, mostra que a taxa de analfabetismo em pessoas com mais de 15 anos no Brasil atinge 14,1% – a meta estipulada pelo PNE (Plano Nacional de Educação) para 2024 é que o índice seja igual ou menor que 9,2%. O Estado de São Paulo alcança nível mais baixo, já que marcou, em 2019, 8% de moradores analfabetos.

Professora destaca força de vontade de adultos que procuram a EJA
Quando Elisângela Alves de Morais, 37 anos, decidiu buscar a EJA (Educação de Jovens e Adultos) para se alfabetizar, além do incentivo familiar, ela encontrou na professora Rosilene do Nascimento apoio, que depois tornou-se amizade. Segundo a docente, a maioria dos alunos cria laços com quem os ensina, justamente porque antes de chegar na sala de aula precisam de coragem para retomar os estudos e, conforme criam confiança, mostram a força de vontade que ficou encoberta ao longo dos anos.

Docente desde 2011, Rosilene ingressou na alfabetização da EJA em 2016, na Prefeitura de Santo André. Ela conta que conheceu Elisângela em 2017, na escola em que trabalhavam. “Ela me contou sobre sua dificuldade com leitura e escrita, fiquei sensibilizada e busquei com a coordenação colocá-la em minha sala. Ela acreditava que não conseguiria aprender e todos acham isso, mas falo com os meus alunos que a neurociência afirma que o ser humano nasce com a capacidade de aprender sempre”, contou Rosilene, relatando que cada estudante tem seu tempo próprio de aprendizado.

Rosilene afirma que professores precisam escutar os estudantes e entender a realidade de cada um. “No ano passado tive de convencer meus alunos, até a Elisângela, a tentar aulas on-line. E ela, como muitos outros, se superou”, disse.

A professora relata que a força de vontade dos alunos em aprender é o que deixa a certeza de que faz o trabalho certo. “Tive aluno que, quando conseguiu ler uma frase, chorou, e toda a sala o aplaudiu. Trabalhar na educação de jovens e adultos é gratificante e emociona a gente o tempo todo”, finalizou a docente, reforçando que, na pandemia, famílias auxiliaram os adultos que estão em fase de aprendizagem, destacando que aqueles que ainda não tentaram, “não devem desistir”.

Especialista cobra dados atualizados para eficiência de políticas públicas
Os últimos dados oficiais sobre a taxa de analfabetismo no Brasil são de 2010, de acordo com levantamento feito pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O censo, suspenso nos últimos dois anos devido à pandemia e à falta de recursos, é visto como problema para efetivação de políticas públicas voltadas à educação, conforme avalia a pedagoga, mestre em educação, coordenadora e formadora da Comunidade Educativa Cedac, Fátima Fonseca.

A especialista destaca que os últimos dados oficiais revelam que 9,02% da população brasileira acima de 15 anos é analfabeta. Já conforme o último estudo do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), pesquisa idealizada em parceria entre o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, mostra que, em 2018, cerca de três a cada dez brasileiros apresentaram “muita dificuldade” para fazer uso da leitura e escrita, o que representa 30% da população entre 15 e 64 anos. “A boa notícia das últimas décadas é que essa taxa vem decrescendo. Mas precisamos de dados mais atualizados, e esse é um problema. Como é que se pensa em políticas públicas efetivas sem ter dados que ajudem?”, questiona Fátima.

Ela explica que a busca ativa das pessoas que deixaram a escola depende, também, de dados atualizados, sobretudo para que os educadores saibam o perfil do público analfabeto. “Nos últimos anos nem se fala mais em erradicar o analfabetismo, já que, ao meu ver, isso passa por duas questões: seria preciso erradicar a pobreza e, consequentemente, ter educação pública de qualidade”, pontua Fátima, destacando que, no Grande ABC, olhar para esses dados em recorte regional seria um dos pontos para que as sete cidades alcançassem políticas públicas efetivas na educação.

Fátima pontua que, em tempos de pandemia, se preocupa também em como o público analfabeto lida com as informações sobre a Covid. “Penso como essas pessoas sobrevivem nos dias de hoje, onde é preciso lidar com inúmeras informações. O ODS 4 (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 4) da ONU (Organização das Nações Unidas) traz desafio enorme, de que é preciso garantir educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover a oportunidade de aprendizagem ao longo da vida para todos. Diria que é objetivo extremamente ousado”, disse a especialista, pontuando que não basta garantir acesso à educação, mas também é preciso qualidade e olhar efetivo a todos os segmentos educacionais.




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