Setecidades Titulo No fio da Covid
Companheiros na saúde e na doença
Por do Diário do Grande ABC
04/04/2021 | 00:12
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Reprodução/DGABC


Curado de Covid relativamente branda, José viu o longo sofrimento da esposa, Maria Gerusa (foto), e hoje diz ter uma certeza: a doença existe e mata. Motorista de ônibus em Santo André, já perdeu vários colegas – dois em apenas um mês – e não consegue entender como tem gente que ainda duvida da gravidade da situação.

“A gente ouve aí fora que é só palhaçada, conversa política, jogada dos políticos e tal. Mas hoje eu sei. Passei por isso, vi cenas muito tristes no hospital, minha esposa ainda tem sequelas bem sérias”, conta, sem conseguir entender que muita gente ainda não leve a sério um grave problema que se escancara diante de todos. 

Em março passado, Gerusa chegara ao Parque João Ramalho fazia apenas quatro meses, vinda de Pernambuco, para se casar com José Bezerra Filho, 58 anos, um velho amor perdido havia 35. Mas a felicidade do reencontro durou pouco. Ela começou a se sentir mal, tinha febre e uma tosse seca e insistente, mas recebeu dois resultados negativos para Covid. 

Como não melhorava, o marido levou-se à UPA Bangu, onde o médico, de imediato, colocou-a em isolamento; o raio X já mostrava os pulmões bastante comprometidos.

“Sou muito ansiosa, comecei a chorar porque ia ficar sozinha. Não conhecia ninguém na cidade. Não queria ficar no hospital, mas era muita dor, e começou a faltar ar, não conseguia respirar. Ansiedade. Meus olhos eram um chuveiro”, Relembra Gerusa.

Não teve jeito. Ela foi levada ao hospital de campanha do Complexo Esportivo Pedro Dell’Antonia e lá passou 17 dias, “muito bem tratada, mas com muito sofrimento, dor por todo o corpo, não conseguia nem comer”. Para Gerusa, os dias pareceram anos.

No dia seguinte à internação de Gerusa, José recebeu telefonema da Prefeitura, que o deixou bastante impressionado. “Ligaram em minha casa para perguntar como estava me sentindo. Disse que tinha perdido olfato e paladar. Aí perguntaram por que eu ainda estava em casa – estava esperando o resultado do exame que fiz pelo convênio, que só sairia dentro de sete dias”, ele conta.

Disseram a ele que não esperasse o resultado; que fosse imediatamente ao posto de saúde mais próximo. “De lá, levaram-me, na mesma hora, ao Dell’Antonia.” Foi o que salvou José. A doença estava ainda bem no começo. O motorista passou por tomografia e o médico o tranquilizou, dizendo que estaria curado em pouco tempo, uns três ou quatro dias. “De fato, entrei na sexta-feira e, na segunda, tive alta, mas pedi para ficar por causa dela (Gerusa). Eu teria que terminar o tratamento na <CF51>(unidade de campanha instalada na Universidade)</CF> Federal (do ABC), mas o médico deixou que terminasse ali mesmo, para acompanhar minha esposa.”

Apesar de tanto sofrimento, Maria Gerusa tem boas lembranças. Na primeira madrugada, sem conseguir gritar, começou a agitar os braços e foi vista por uma enfermeira. “Ela correu até onde eu estava, a enfermeira Adriana, nunca vou esquecer, e me deu suporte.”

A enfermeira que Gerusa não esquece cuidava dela todos os dias, até colocava comida em sua boca, porque de outra forma não conseguiria comer. “O cuidado deles é enorme, a gente vai se sentindo bem. A cada dia chegava perto de mim, me cuidava. Eu não conseguia andar, nem me mexia. Só pedia para o médico me dar injeção <CF51>(para passar a dor)</CF>.”

O marido José confirma: “A gente teve um atendimento lá que não tenho nem palavras. O hospital é maravilhoso, o pessoal cuida bem; do faxineiro ao médico, a atenção é muito grande. Remédio na hora certinha, exames a toda hora, comida boa na hora certa. Tudo ótimo”. José Bezerra avalia que o telefonema da Prefeitura lhe salvou a vida, porque, “se tivesse ficado em casa, teria piorado”.

Certamente a doença teria piorado em sete dias, ele avalia, porque a Covid pode progredir muito rapidamente. Atendido a tempo, faz questão de dizer que até amizades fez por lá e que não esquece o enfermeiro Felipe, por causa dos cuidados que dedicava aos idosos. 

Gerusa conta ainda que teve de esconder da mãe idosa que estava doente. Tinha medo da reação dela; até porque a família não queria que ela saísse de Pernambuco porque a Covid já estava começando quando ela decidiu se mudar para Santo André. “Só contei depois que saí do hospital.” 

E a pouca gente ela revela que costumava ver um pássaro a seu lado durante todo o tratamento. Ele ficava deitado a seu lado no hospital. Ela acredita que era o Espírito Santo, porque assim que melhorou, o pássaro desapareceu. “Tinha vergonha de contar, porque iam pensar que eu estava maluca.”

A alta que recebeu, no entanto, não foi o fim de tudo. Depois de meio ano, Gerusa ainda sofre com sequelas bem severas. A pior delas: simplesmente não tem memória recente. Esquece tudo logo depois de ouvir. “Só passando por isso é que dá para entender o que é. Ainda não respiro bem, minhas pernas doem, estão pesadas; tive de cortar o cabelo, porque não parava de cair. Esqueço de tudo, tem palavras que não consigo falar. Não decoro mais números – e olhe que trabalhei com matemática.”

Gerusa conta que sempre foi vaidosa e, por isso, tinha vergonha até de sair de casa para ir para a igreja. “Eu não queria mais sair de casa. Meu cabelo ficou todo branco e eu fiquei com vergonha.”

A José, o que espanta é que tem gente que não acredita, mesmo ele contando o que viu com os próprios olhos. “Até colegas motoristas riem e não acreditam.” Ele acha que só quem passa mesmo pelo problema consegue ver o horror. Por isso não se cansa de alertar os passageiros de seu ônibus para que usem a máscara corretamente. “Muita gente quer entrar sem máscara. Eu não abro a porta.”

Até a máscara reserva, que costuma levar na mochila, José deu a uma passageira, que queria entrar de qualquer jeito para não perder o horário. “O problema”, conta, “é que muitos tiram a máscara ou colocam no queixo depois de passar a catraca.” 

O pior, ele comenta, é que a maioria das pessoas que não usam máscara ou a usam de forma errada é formada por mais velhos. “Os idosos deviam evitar mais sair às ruas. Porque são mais frágeis, mas são os que menos se cuidam no ônibus. Não usam álcool nem máscara.”

Por isso, ele não se cansa de falar: “Peço que se cuidem. Deus cuida da gente, mas a gente tem que fazer nossa parte”. A mulher completa: “Estou com vida, a melhor coisa que existe. O resto tem que correr atrás”.

Hospitais de campanha salvaram muitas vidas

Maria Gerusa e José Bezerra Filho, que só têm palavras de agradecimento pelos cuidados que receberam, foram internados no primeiro hospital de campanha de Santo André, instalado no Complexo Esportivo Pedro Dell’Antonia. A unidade começou a funcionar já no início da pandemia – os primeiros pacientes chegaram no dia 16 de abril de 2020, em resposta rápida do município para fazer frente à situação.

Seguindo um planejamento que reestruturou a rede de saúde, Santo André recebeu mais dois hospitais de campanha no ano passado, um no Estádio Bruno José Daniel e outro no campus da UFABC (Universidade Federal do ABC). Foram criados para estabilizar e curar pacientes leves a moderados, desafogando a rede hospitalar, onde ficam os casos mais graves.

No total, a cidade passou a contar com 410 novos leitos para tratamento da Covid-19, de baixa, média e alta complexidades. Eram 120 no Estádio Bruno Daniel e são 180 no Dell’Antonia e dez no <CF50>campus</CF>. Neste último, ainda foram abertos leitos, para receber gestantes e puérperas, numa ala exclusiva.

Dos três, o Dell’Antonia e o do campus universitário nunca interromperam as atividades e agora se mostram mais necessários que antes. Todos os hospitais de campanha funcionam como retaguarda do serviço de saúde, só recebendo doentes levados de outros postos de atendimento, transferidos em ambulâncias, inclusive de outros municípios do Grande ABC.

Apenas no Dell’Antonia, receberam alta 4.500 pessoas que foram tratadas ali. Para diminuir o isolamento e a tristeza dos pacientes internados, que precisam ficar distantes das famílias, o hospital implantou as videochamadas e uma medida curiosa, mas de grande alcance.

Como médicos, enfermeiros e outros trabalhadores têm de ser protegidos por inúmeros paramentos, como máscaras, toucas, óculos, viseira, avental e luvas, a aparência deles nem sempre parece muito humana. Por isso, os profissionais passaram a usar crachás bem aparentes, com fotos sorrindo e nome de fácil identificação.




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