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Abaixo a literatura fast food
Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
30/04/2005 | 18:03
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Anne Tyler é uma das melhores romancistas da atualidade. Ler seus livros é um descanso. É chegar em casa, tomar um banho e sentar-se em uma poltrona macia para aproveitar o silêncio da noite. Ela não escreve um único palavrão, não há tiroteios, nem perseguição de carros em fuga. Em seus textos, não se encontrará um suspense forçado, do tipo que leva Jesus a ter um filho com Maria Madalena, enquanto Leonardo da Vinci pertence a uma sociedade secreta e usa suas obras para contar o terrível “segredo”.

Ao contrário da literatura fast food, do tipo O Código Da Vinci, com suas fórmulas de sucesso e seus esquemas manjados para manter fixa a atenção do leitor, Anne Tyler não usa nada disso.

Ela escreve no melhor estilo slow food. Cozinha seus ingredientes sem pressa, passa horas tecendo um enredo simples, familiar e deliciosamente digestivo.

Autora bem-sucedida de sucessos literários como Lições de Vida e Turista Acidental, entre outras obras, ela retorna agora com um novo lançamento – Michael e Pauline, Um Casamento Amador (The Amateur Marriage) – pela editora ARX/Siciliano.

Nesse novo livro, Anne Tyler acompanha a história de Michael e Pauline. Eles são jovens, esperançosos e começam a namorar durante a Segunda Guerra. São pessoas comuns que vivem em Baltimore (Estado de Maryland, Estados Unidos), atropelados por um evento de envergadura global.

Michael entra como voluntário para o Exército, é ferido no treinamento de combate e volta para casa claudicante e sem ter disparado um único tiro no conflito.

Michael e Pauline se casam e a autora vai acompanhar a união por décadas, utilizando um artifício interessante. Cada capítulo representa a passagem de vários anos. A narrativa alterna seu foco. Às vezes é um dos filhos que observa os acontecimentos; às vezes Michael ou, então, Pauline.

A princípio, o casal está com filhos pequenos, um deles recém-nascido, quando Pauline ensaia trair Michael com um vizinho divorciado. Mais tarde, as crianças cresceram e uma delas (a filha mais velha) torna-se rebelde, e foge de casa. Em outro capítulo, a filha fujona reaparece drogada, com um filho abandonado em uma pensão precária.

Os avós (Michael e Pauline) precisam se deslocar até o outro lado do país em busca de um neto que eles nem imaginavam existir. Os avós passam a cuidar da criança como se fosse seu quarto filho. Eles são comerciantes, têm um mercadinho de bairro para cuidar.

A filha drogada e rebelde desaparece. A família passa a agir de maneira mecânica, contínua. É como se aquele elemento disperso nunca tivesse existido. A vida segue. Pauline, no entanto, evita sair de casa. Não faz viagens prolongadas, com receio de estar fora justamente no dia em que a filha retornar.

As obras de Anne Tyler têm a particularidade da ruptura. Em determinado momento, um dos personagens vai virar a mesa de forma decisiva. Neste livro, o desenlace acontece no 30º aniversário de casamento. Para Michael, a união representava sofrimento e renúncia. Ele sentia a mulher como um peso sobre as costas, uma responsabilidade inevitável e pouco prazerosa.

Os três últimos capítulos de Michael e Pauline são de uma beleza literária sufocante. O leitor se sente submergir lentamente na densidade da história. No último segmento, quando Michael retorna, já idoso, ao mercadinho onde havia passado a maior parte de sua vida, e caminha pelas ruas decadentes, relembrando fatos marcantes de sua existência, a autora celebra a compreensão, o perdão e a humanidade.

Na briga diária, nos conflitos que a gente enfrenta para sobreviver, muitas vezes nos afastamos e perdemos o respeito pelo semelhante. Isso se dá justamente quando tentamos criar uma família a partir de valores humanitários. É nessas horas que a arte nos resgata. A imagem criada por Michelangelo, o dedo de Deus tocando os dedos de Adão, na Capela Sistina, serve como metáfora para a arte, que retira o homem do lodaçal do cotidiano e o ergue, e o salva da mediocridade. Obrigado, Anne Tyler.



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