Cultura & Lazer Titulo
Para perder o sapato
Por João Marcos Coelho
Especial para o Diário
19/02/2007 | 19:03
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Decidiu-se iniciar as comemorações do centenário do frevo no dia 9 de fevereiro deste ano. A data oficial, no entanto, não bate com o que dizem os livros.

O dicionário diz que o frevo “é uma dança surgida no Recife a partir dos últimos anos do século XIX, com a progressiva multiplicação das síncopes e do gingado rítmico das músicas de bandas militares, a fim de propiciar desarticulações de corpo dos capoeiras, que exibiam sua agilidade, abrindo os desfiles militares, com passos improvisados ao som das marchas e dobrados. As marchas têm um ritmo frenético e contagiante, que lhe confere o caráter de uma dança de multidão”.

O verbete prossegue em tom pedagógico: “O frevo divide-se em duas partes e seus motivos se apresentam sempre em diálogos de trombones e trompetes com clarinetas e saxofones”. E agora, prometo, a última citação do dicionário: “O grande interesse está na sua coreografia, individual improvisada: os dançarinos raramente repetem um gesto ou atitude, mantendo sempre uma feição pessoal e instintiva de improvisação – o passo – originado no gingar dos antigos capoeiras. Com a ajuda de rítmica de velhas sombrinhas e guarda-chuvas, o passo dava à massa de dançarinos que evoluíam pelas ruas apertadas uma impressão visual de fervura, o que originaria a palavra frevo, como substantivo derivado de frever, por ferver”.

Pronto. Agora que já sabemos tudo sobre o frevo, basta ouvir e dançar ao som de um dos mais belos tributos a esse originalíssimo misto de música e dança nascido nas ruas do Recife: um primoroso e surpreendente álbum duplo intitulado 100 Anos do Frevo – É de Perder o Sapato, que a gravadora Biscoito Fino coloca nas lojas em pleno Carnaval. Primoroso porque o CD cantado convoca o maior especialista atual do frevo, Clóvis Pereira, para fazer os arranjos e liderar uma orquestra frenética, e as maiores estrelas da música popular brasileira em ótimas interpretações dos grandes clássicos do gênero.

É irônico e curioso que o dublê de cantor-compositor-ministro da Cultura Gilberto Gil tenha a voz abafada quase todo o tempo na faixa que abre o CD, Micróbio do Frevo. Os metais generosos cobrem sua voz. Bastaria não obrigá-lo a cantar num registro tão grave, no qual sua voz desaparece; basta comparar com a segunda faixa, com Lenine à vontade em Energia; ou com Alceu Valença, em casa com Homem da Meia-Noite; e mesmo o tímido Edu Lobo se sai bem em Frevo Diabo.

Do lado feminino brilham os talentos de Maria Bethânia (ótima no frevo-canção Frevo nº. 1); Maria Rita (agitando uma hora da saudade em Valores do Passado); Elba Ramalho (perfeita em Frevo Rasgado). Evocação nº. 1, o maior dos clássicos do frevo-canção, entretanto, fica com uma antológica interpretação de Antonio Nóbrega.

Mas o frevo, antes de ser melodia que invadiu as ruas, usou a coreografia, a dança, para bagunçar o coreto dos desfiles militares pernambucanos. Por isso, é fundamental ouvir com atenção o CD instrumental. São catorze faixas em que é difícil apontar a melhor, tamanha a qualidade dos arranjos e a competência dos músicos. São maravilhosos os diálogos e entrechoques de trombones e trompetes com as clarinetas e saxofones, justamente como dizia nosso velho dicionário tentando trocar em miúdos as razões que fazem deste gênero um sedutor das massas.

Clóvis Pereira assina a maioria dos arranjos, de Fantasia Carnavalesca, uma deliciosa digressão musical sobre Vassourinhas, o mais célebre dos frevos, de Maria da Rocha e Joana Batista, até Aninha no Frevo, uma de suas muitas composições. Além dele, a SpokFrevo Orquestra, que leva seu nome por causa do saxofonista Spok, também merece ter os nomes de seus excepcionais instrumentistas divulgados: Spok, Gilberto Pontes e Gilmar Black nos saxes; Nilsinho Amarante, Cléber Silva, Flávio Souza, Marcone Nascimento e Marcílio nos trombones; Enok Chagas, Pêto, Lampadinha, Papalégua, Germerson Neto e Fábio Costa nos trompetes; Renato Bandeira na guitarra; Hélio Silva no baixo; e Adelson Silva na bateria.

Enfim, dois CDs para não esquecer tão cedo e desde já entronizados, em pleno fevereiro, como um dos grandes lançamentos de 2007.



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