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Grande ABC oferece abrigo para mulheres ameaçadas
Deborah Moreira
Do Diário do Grande ABC
30/05/2010 | 07:17
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Helena Rodrigues, 34 anos, descobriu um câncer na mama direita em 2006. Desde então, vem lutando contra a doença que, mesmo depois da mastectomia (extração do tumor), atingiu outras partes do corpo. Ela tem um sonho: vencer a doença, terminar os estudos, tornar-se juíza na área criminal e ter uma casa. A história de Helena seria apenas mais uma não fosse o estigma que carrega: há alguns anos, tomou a decisão de procurar uma delegacia da mulher e denunciar o então marido, que a ameaçava inúmeras vezes de morte, além de bater e obrigá-la a traficar drogas onde moravam, em uma das cidades do Grande ABC. Ela deixou para trás a casa e a família. Os amigos e o trabalho já havia perdido, por causa do ciúme do companheiro.

Desde então, vive em uma das casas-abrigo para mulheres em situação de violência mantidas pelas sete prefeituras do Grande ABC através do Consórcio Intermunicipal. Para garantir a integridade e até mesmo a vida dessas mulheres e seus filhos, os endereços das casas são mantidos em sigilo absoluto. O Diário teve acesso a um desses locais, onde passou um dia. Para garantir o anonimato, os nomes no texto são fictícios.

"As pessoas não têm ideia do que é a violência doméstica porque não veem. Mas ela está lá, entre quatro paredes", relatou Helena, que passou mais de 10 anos casada com o agressor. "No último ano, quando descobri o câncer, foi ainda pior. Precisava fazer quimioterapia e ele achava que eu o estava traindo. As brigas eram intermináveis. Eu levava soco no estômago, porque assim não ficavam marcas. A pressão do tráfico de drogas era grande. Além de vender, ele também usava e ficava paranóico. Muitas vezes, apontou a arma para a minha cabeça dizendo que iria apertar o gatilho", lembrou ela, que só decidiu procurar ajuda depois de viver uma situação limite.

Após horas brigando, sob várias ameaças de morte, ela trancou toda a casa, jogou álcool e riscou o fósforo com os dois dentro. "Para mim, nada mais importava", desabafou Helena. Depois de socorridos por parentes e vizinhos, foi convencida a procurar ajuda.

Ela é uma das sete mulheres que vivem atualmente na Casa 1, mantida pelo Consórcio e coordenada por uma ONG. São quatro quartos, com beliches e armários simples; três salas, uma delas com televisão; cozinha grande, dois banheiros, quintal na frente e nos fundos e uma edícula chamada de escolinha pelas 11 crianças que moram no lugar, onde são realizados deveres de casa e atividades educativas. Outras 16 pessoas convivem no espaço: psicólogas, assistentes sociais, educadoras, motoristas, além da cozinheira e de uma secretária.

Gastos - São cinco refeições ao dia para 34 pessoas. Por mês, são consumidos 50 quilos de açúcar, 60 de arroz, 30 de feijão, 26 latas de óleo, 20 caixas de leite, 12 quilos de chocolate em pó e 120 de carne. Segundo cálculos da coordenação da casa, são gastos, mensalmente, R$ 1.700 em supermercado, R$ 800 em carne e R$ 600 em verduras, frutas e legumes.

Segundo o Grupo de Trabalho do Consórcio responsável pelas casas, o investimento total passou de R$ 64 mil para R$ 72 mil em maio. Neste valor, estão incluídos gastos com as equipes, manutenção de limpeza do local e do veículo que está disponível exclusivamente para as mulheres. Os dois motoristas se revezam no transporte das mulheres e seus filhos para os serviços de saúde, educação e nas audiências da Justiça, onde requerem pensão alimentícia e até o afastamento do ex-companheiro.

Sigilo é segredo da manutenção das casas
Para manter as residências provisórias, onde as mulheres permanecem por seis meses, em média, o sigilo deve ser absoluto. Há sistema de câmeras em volta das casas e regras que não podem ser quebradas.

Nos primeiros 30 dias, as abrigadas não podem estabelecer contato com o ‘mundo exterior'. Não é permitido dar o endereço do local, fazer ligações telefônicas nem mesmo procurar a família ou amigos pessoalmente. Depois da trintena, é possível freqüentar a escola, cursos, passear com as crianças uma vez por semana e marcar encontros com parentes. O tempo máximo de permanência fora é de três horas e obrigatoriamente uma educadora sempre acompanha.

"Faz quase um ano que não vejo minha família. Consegui falar por telefone no mês passado", contou Helena, que mantém uma rotina bastante movimentada. Diariamente, faz caminhadas e vai à escola, onde frequenta o supletivo. Uma vez por semana, vai à terapia, ao hospital - para tratamento oncológico - e faz um curso de cabeleireira e maquiagem. "Vou à casa de colegas fazer trabalho. Quando me perguntam onde moro, a solução é ser curta e grossa para não descobrirem onde moro", relatou ela com bom humor.

Cresce número de denúncias na região
O modelo adotado pelas prefeituras para administrar e financiar as casas-abrigo a partir do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC tornou-se referência internacional. Grupos de estudiosos do Chile e de Moçambique já visitaram a região em busca da experiência. No entanto, o aumento do número de mulheres que procuram o serviço tem tornado os esforços insuficientes.

"A gente percebe que os números da violência nas cidades têm aumentado consideravelmente. E as duas casas, infelizmente, são pouco para atender a demanda. Chegamos a pedir vagas para outras casas", revelou Maria Helena Gonçalves Rios, representante de Ribeirão Pires no GT (Grupo de Trabalho) do Consórcio.

No Brasil, os registros comprovam o aumento das denúncias de violência contra a mulher. Em 2008 foram registradas 195 mil ocorrências nas delegacias de defesa da mulher, em todo o País. Já em 2009, foram 215 mil casos. Não existem, porém, estatísticas de mulheres assassinadas por violência doméstica, geralmente causada por alguém próximo como marido, pai ou padrasto.

"A violência não está maior. Ela é grande há muito tempo. As denúncias, sim, estão aumentando porque está sendo criada uma rede de acolhimento que dá segurança para elas procurarem ajuda", analisou Marilda Lemos, que coordenou a primeira casa-abrigo do Consórcio, nos primeiros meses de implementação, entre 2000 e 2001. Atualmente, Marilda coordena o curso de serviço social da Faculdade Paulista de Serviço Social, em São Caetano, e presta consultoria na área. Segundo ela, a violência contra a mulher é crônica porque faz parte da nossa cultura, que legitima os atos violentos.

A Central de Atendimento à Mulher, Ligue 180, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que recebe denúncias de agressões ou ameaças, registrou aumento nos atendimentos de 65% no primeiro trimestre deste ano (145,9 mil) em comparação com o mesmo período do ano passado. Os relatos de violência, por sua vez, saltaram de 9.300 para 29 mil.

Delegacias e centros de referência são porta de entrada
O primeiro local que as mulheres procuram quando agredidas é a DDM (Delegacia de Defesa da Mulher), que encaminha para algum centro de referência para avaliar a necessidade de proteção em casa-abrigo. "Nos abrigos, temos equipe técnica capacitada, cursos profissionalizantes e utilizamos as redes públicas de Saúde e Educação. Matriculamos crianças e as mulheres que desejarem nas escolas", contou Raquel Moreno, presidente da ONG que administra as duas casas.

As cidades da região possuem alguns dos poucos locais especializados no País. Segundo levantamento realizado em 2009, divulgado neste ano pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 262 possuem casas-abrigos; 559 mantêm centros de referência de atendimento psicológico, e somente 397 dispõem de uma Delegacia de Defesa da Mulher. Na região, a rede é composta por quatro delegacias do gênero e três centros de referência, onde também é oferecida assessoria jurídica. "É preciso avançar mais e aprofundar as discussões de gênero (machismo) que refletem no atendimento das delegacias", disse Raquel.

Ancilia Del Veja Giaconi, delegada titular da 2º DDM da Capital, contesta. "Temos evoluído muito. A Lei Maria da Penha, de 2006, garante abertura de inquérito policial e punição ao agressor. Também percebo a preocupação de colegas em dar o melhor atendimento."

Confinamento causa conflitos
Nem todos encaram o novo modo de vida com bom humor. O aniversário de 15 anos de Juliana Alvarenga, filha de Patrícia Alvarenga, 32 anos, foi dentro da casa. "Testemunhei a revolta dessa menina e me emocionei. Ela chorava tanto de raiva por estar aqui dentro naquele dia tão especial para ela", lembrou a coordenadora da Casa 1. Juliana, os quatro irmãos e a mãe moram em um dos quartos há cerca de dois meses. A mãe está sem usar drogas no mesmo período. "Apanhei com fio de aço. Nossa vida virou um caos quando começamos a usar crack, há um ano. Ele nunca bateu nas crianças; em compensação, dizia para não me obedecerem", contou Patrícia, que está reconquistando o respeito dos filhos procurando trabalho e fazendo aulas de computação. "Enquanto ele está solto, ficamos aqui trancados. Aqui é o verdadeiro confinamento, a convivência com as outras é complicada."

Ficar em um quarto sozinha com os filhos nem sempre é possível. Nina Aguiar, 33, e a filha Vânia, 9, dividem quarto com a doméstica Solange Ferreira, 34, e os filhos de 4 e 11 anos. "Ainda estou na trintena, mas já fiz algumas amigas. O clima entre algumas moradoras é ruim, mas fico na minha", disse Nina. Casada por duas vezes, ela se emociona ao lembrar das casas que deixou para trás. "No primeiro relacionamento, já tinha sofrido violência, principalmente psicológica, e fui embora. E agora novamente nessa situação... Deixei outra casa que ajudei a montar." Sua família mudou o número do telefone e não quer mais se envolver. "As marcas na alma são difíceis de sair e tenho medo de me envolver com outro homem. Só quero pensar na minha filha e construir uma nova vida." Nina tem 1º e 2º graus completos e quer ser estilista.




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