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A grande alavanca

EEPG Professora Inah de Mello, segunda-feira à tarde, um dia ensolarado...

Por Carlos Ferrari
09/03/2015 | 07:00
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EEPG Professora Inah de Mello, segunda-feira à tarde, um dia ensolarado… Foi assim que comecei uma jornada que transformaria a minha vida. A máquina Braille Perkins emprestada pela escola e uma sala lotada de crianças ‘normais’ faziam parte de um cenário sonhado por mim e, principalmente, pelos meus pais, que acreditavam que o estudo era a única ‘cura’ para qualquer problema e, também, para minha deficiência.

Meu pai, senhor Sebastião, então metalúrgico, cursou só os quatro primeiros anos e foi diplomado, segundo ele, diante de uma grande comemoração de toda a família, regada de mortadela e tubaína. Minha mãe, dona Climéria, dona de casa, infelizmente teve que parar os estudos antes, porém, as escolas entraram definitivamente em sua vida a partir do meu primeiro ano de vida.

Como uma heroína, ela lutava por minha educação incansavelmente, na busca por livros em Braille, pela doação da máquina Perkins, pelo espaço nas diferentes escolas que estudei.

Os dois repetiam sempre: “Filho, se quiser vencer tem que estudar, e estudar em uma escola normal!” E assim foi feito. Além de Português, Ciências, Matemática e outras disciplinas, tínhamos aulas diárias de inclusão. Essa disciplina, não tinha professor definido e nem era parte do currículo da escola. Foi descoberta por nós, crianças, que entre brincadeiras, pequenas brigas e muitas perguntas, encontrávamos respostas que talvez resolvessem problemas gigantescos de caráter social.

Uma das principais lições que todo ano era reforçada e hoje, enquanto professor, ainda faço questão de exercitar é o potencial das limitações. Descobrimos que quando se tem alguma deficiência, se tem a vantagem de lembrar-se disso o tempo todo. Não dá para esquecer ou jogar debaixo do tapete e aí é transformar isso em uma grande alavanca ou em uma grande cortina. A alavanca faz com que cada limite se transforme em meios para alcançar potencialidades escondidas e a cortina serve como esconderijo dos desafios que a vida pode nos trazer.

Com a ajuda de meus pais, professores e de todos os colegas de escola, escolhi a alavanca! Ainda me lembro como jogávamos bola depois da aula. De início, fui eleito técnico do time da 3ª série A, pois todos queriam que eu estivesse no jogo de alguma forma. Mesmo sem enxergar nada, o jogo era narrado por um jogador que ficava no banco. Cada substituição ou idealização de um novo esquema tático era respeitada e cumprida por todos. Depois descobrimos a possibilidade de brincar com uma bola ensacada em uma sacola de supermercado. Isso logo se tornou uma nova brincadeira. A bola fazia barulho e jogávamos gol a gol, onde o potencial do chute era valorizado.

Minha limitação em copiar matéria da lousa também fez surgir um novo personagem em sala de aula: era o aluno que ditava. Quase todos se candidatavam a uma função, que além de ser valorizada pelas professoras, ainda garantia a possibilidade de conversar um pouquinho, mas sem nenhuma punição.

O aluno com deficiência inserido em uma sala de aula infelizmente acaba sempre herdando algum rótulo que vai do super aluno até o de coitado, incapaz de realizar as tarefas solicitadas. Sempre estive na primeira condição e, ao longo dos anos, isso passou a me incomodar. Vinha junto o medo de ser rejeitado pelos colegas ou mesmo de ser obrigado a sempre ir bem. A solução que alguns diriam inconsciente, para mim foi clara e pragmática. Eu tinha que não ser tão bom!

Essa solução acabou sendo extremamente divertida. Ruim para os meus pais que começaram a ser chamados pelas professoras, que diziam que eu era responsável pela organização da bagunça em sala de aula, porém, saudável na construção de um aprendizado natural.

Pontos negativos, advertências e uma recuperação que veio como uma catástrofe se misturavam com boas notas e com a participação em cada vez mais espaços dentro de todas as atividades escolares. Foram muitas conquistas.

Minha mulher, que conheci no cursinho pré-vestibular há 15 anos, no início apenas uma colega de sala, que em meio a muita leitura de romances e contos, passou a fazer parte da minha história. O amigo e padrinho de casamento Marcio, ex-companheiro de banda de heavy metal e atual sócio em uma consultoria, fruto de uma amizade de quase 20 anos, além de muitos professores e escolas por onde passei, fazem parte de um conjunto de tesouros impossíveis de contabilizar.

Hoje sou professor universitário, na área de Administração. A inclusão em sala de aula, desta forma, acaba sendo, de novo para mim, um aprendizado constante. Neste contexto posso afirmar, com certeza, que o convívio com o diferente precisa ser estimulado e praticado em todos os níveis de formação educacional. Nossa sociedade carece de advogados, arquitetos, médicos, policiais, dentre outros profissionais, que a compreendam como um meio de diversidade.

Por fim, esse relato não pode ser entendido como uma bandeira. Não devemos transformar o debate em torno da educação inclusiva em uma batalha entre os que defendem e os que são contra. Tenho certeza da importância das escolas e institutos especiais. Precisamos nos unir e construir um país que verdadeiramente seja de todos.

A construção desse novo país depende de um trabalho conjunto, onde toda a sociedade utilize suas limitações como alavancas de seus potenciais. Milhares de livros são vendidos dizendo você pode, você é um vencedor, o sucesso depende de você.

Proponho que escrevamos livros sobre nossos limites. Precisamos enxergá-los e encará-los frente a frente. Só assim poderemos transformá-los nas grandes alavancas que resgatarão a autoestima e a real capacidade inerente a todos de ir além. 

* Carlos Ferrari é presidente da Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), faz parte da diretoria executiva da ONCB (Organização Nacional de Cegos do Brasil) e é atual integrante do CNS (Conselho Nacional de Saúde).




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