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Gente do ABC - O nado que vence a escuridão
Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
30/10/2005 | 08:44
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Ela ilumina a penumbra com gargalhada. Regiane Nunes tem 20 anos e é deficiente visual. Tem 20% da visão do olho esquerdo, e quase nada do direito. A limitação de nascença é superada com os outras habilidades. A maior delas, apontada por ela mesma: a fala. Regiane fala muito, e também com as mãos. Diz que só fecha a boca quando exercita outro de seus talentos, a natação. Acabou de voltar de Fortaleza (CE), onde foi campeã em quatro provas e bateu dois recordes brasileiros, em etapa do Circuito Loterias Caixa Brasil Paraolímpico de Atletismo e Natação. Freqüenta as piscinas desde pequena, mas começou a disputar provas só na adolescência. Há um ano, intensificou os treinamentos. Percebeu que poderia – e queria – ir mais longe.

Regiane mora no Jardim Caçula, em Ribeirão Pires. Para conciliar trabalho, faculdade e treino, acorda antes das galinhas. Entra às 8h no serviço, é atendente numa locadora de veículos no Centro de São Bernardo, e sai às 14h, mesmo horário em que começa a aula na Universidade Metodista. Chega atrasada todos os dias, mas os professores do curso de Educação Física são seus “camaradas”. À noite, nada na piscina do Baetão com os colegas de equipe, a Mesc/São Bernardo. Aos sábados, começa as braçadas às 6h30. Só não treina aos domingos. Dia de descanso? Não para ela, que trabalha das 9h às 15h.

Quando Regiane nasceu, os médicos desenganaram os pais. Disseram que ela não enxergava absolutamente nada por causa do glaucoma congênito. Mas Francisco, o pai atento, percebia que o bebê acompanhava movimentos com os olhos. “A gente voltava no médico, meu pai falava que eu enxergava. Diziam que era ilusão de pai. Até que no final da consulta, viram que ele tinha razão.” A atleta passou pela primeira cirurgia com um mês de idade. Passou muito tempo da infância em sala de espera de consultório. Aos três anos, ganhou um irmão, Renato, de presente. Ele também é nadador e portador da mesma deficiência.

Desde pequenos, fazem tudo juntos. Ele não gostava muito de natação, mas Regiane insistia. A mãe não deixava que ela fosse sozinha para o treino. Até que Renato pegou gosto pela água. “O Renato também enxerga pouco. Só 20% de um olho. Mas se juntar os 20% dele, com os 20% meu, dá quase um olho. Aí a gente não se perde, nem tromba com ninguém na rua. Um ajuda o outro”, brinca a nadadora, que tira risada das dificuldades sofridas por quem pouco enxerga. “Vivo perdendo as coisas. Outro dia levei a mochila do meu namorado embora pensando que era a minha. Em viagem de competição, se ninguém fala pra gente o que tem pra comer no hotel, a gente vai enchendo o prato. Aí pega cebola pensando que é repolho.” O namorado de Regiane, Flávio, é seu companheiro de piscina e tem glaucoma congênito. Estão juntos há cinco anos.

Dentro das piscinas, Regiane não enxerga nada. Fora delas, precisa dos óculos para decifrar as letras. Sabe ler em braile, mas não utiliza o recurso, porque consegue ver as palavras. “Mas se for aquela letrinha tamanho 12, peço ajuda.” Cinema, só se for pra ver filme nacional ou dublado. “Ou alguma boa alma tem que ficar lendo as legendas pra mim.” Na faculdade, os professores adaptaram as aulas para que ela pudesse acompanhar, e os colegas também dão uma mãozinha. “Como falo pra caramba, é fácil fazer amigos.”

Os médicos dizem que, aos 20 anos, é um milagre Regiane ainda enxergar. A doença é degenerativa. Não dá para saber quando a atleta perderá a visão. Ela fala do futuro e se emociona. Não tem como não pensar nesse dia, que vai chegar. Regiane olha as coisas como se não fosse mais tornar a vê-las. Aproveita cada detalhe que consegue captar. “A coisa mais bonita do mundo é isso. É acordar e ainda perceber que vejo. Essa é a beleza do mundo pra mim.” Não deixa de fazer planos por isso. Vai se formar professora de Educação Física em dois anos, e quer se especializar em esportes adaptados. Sonha com as Paraolimpíadas de Pequim, na China, em 2008. Se ganhar medalha, vai dedicar à mãe, Rosália. “Minha mãe são os meus olhos. Tudo que tenho devo a ela, sempre me incentivou e mostrou que, com esforço, a gente consegue tudo.”




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