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Nova coreografia de Sandro Borelli estréia sexta-feira
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
13/07/2006 | 08:27
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 Pai, filho e epístola santa. A trindade que emoldura Carta ao Pai, escrita em 1919 por Franz Kafka (1883-1924), é enfim viabilizada no palco pelo coreógrafo andreense Sandro Borelli e sua Cia. Borelli de Dança. Nesta sexta-feira, a trupe estréia curtíssima temporada na Galeria Olido. Espetáculo com entrada franca, deixará o endereço paulistano dentro de duas semanas para cumprir pelo menos dois meses de apresentações pelo interior de São Paulo (o Sesi Santo André é uma possível parada, em agosto). Dica: não deixe para o mês que vem o que pode ser assistido hoje, ou até dia 23, no Centrão de São Paulo.

Carta ao Pai, a rigor, é a quarta vez em que Borelli e Kafka se encontram. Do escritor checo, o coreógrafo já adaptou A Metamorfose (2002), O Processo (2003) e O Abutre (2003). Se na conta for adicionado Kasulo (2002) – patchwork que além de Kafka admitia Augusto dos Anjos e Ismael Nery como inspirações – Carta ao Pai seria o quinto Borelli kafkiano. Ou o quinto Kafka borelliano?

É uma relação artisticamente íntima a de coreógrafo e escritor. Em cinco espetáculos, o bailarino fez do movimento argila para a utopia negativista do autor de A Metamorfose, submeteu o corpo à obrigação de reproduzir em cena (e sem palavras) a maldição de ser indivíduo em terra de instituições e convenções que os textos de Kafka descreviam. Há certa atmosfera de despedida à inspiração kafkiana em Carta ao Pai, que teve um dos ensaios gerais acompanhados pelo Diário, terça-feira. E não só porque o texto – uma carta do escritor endereçada a Hermann Kafka, seu pai – seja um acerto de contas, um desabafo, um relatório em que o autor responsabiliza o progenitor opressor por sua angústia e pela criação de personagens e cenários distópicos.

“Não tinha pensado nisso. Intimamente, pode até ser que eu esteja me despedindo. Não dá para viver de Kafka para sempre”, diz Borelli. De fato, o que seqüestrou a atenção do coreógrafo em Carta ao Pai foi a inexistência de metáforas do texto. Kafka se despe e não veste fantasia de inseto nem de Prometeu. Negocia diretamente com Hermann, o primeiro e mais influente censor de sua literatura, o homem de quem ele dizia ter medo. É Kafka por Kafka, auto-desmascaramento da ficção, da criação. Auto-divã que vira também ponto final, confissão que decodifica a imaginação. “É uma resposta para praticamente tudo que Kafka produziu”, avalia Borelli. “Nos ensaios (de Carta ao Pai), eu tracei um paralelo com O Processo (livro que narra a prisão de um homem que desconhece as acusações que recaem sobre ele). O Joseph K. (protagonista do romance) na verdade é o pai de Kafka, que não sabe por que está sendo acusado, quais os seus crimes. E Kafka é o sistema que o incrimina”.

Cabe um parêntese aqui. O fato de Borelli ver em Kafka um incriminador remete ao fato de que a queixa epistolar de 70 páginas, escrita com destinatário certo, nunca chegou às mãos de Hermann. “Kafka foi tirânico, cruel com o pai. Não lhe deu direito à réplica”. A coreografia ousa. Faz o papel de mister postman, carteiro que grita o nome de Hermann com a missiva à mão. Entrega-a a seu único leitor por direito. Arrisca. Intui a resposta do pai ao filho. Não da forma mais convencional, pois não identifica o personagem Pai em um só bailarino, evita qualquer caracterização fisionômica.

Distribui espelhos sobre o palco e elege como signos paternos um chapéu e um paletó, que viajam entre os sete integrantes do elenco (Roberto Alencar, Vanessa Macedo, Daniella Rocco, Samanta Barros, Alexandre Magno, Robson Ferraz e Edson Calheiros). Simples, é uma tradução cabível do “comum desamparo” que Kafka diz compartilhar com o pai e que eterniza no papel. Filho e pai, artista e musa, oprimido e opressor, promotor e réu, viram todos uma culpa única, sem vencedores ou vencidos na lógica coreográfica de Carta ao Pai.

Aos 46 anos, Sandro Borelli desta vez não integra o elenco. Preferiu ficar com a direção artística para dedicar-se “apenas à criação, ao artesanato de um espetáculo difícil que tem como fonte única uma carta”. E também porque administra atualmente uma das pouquíssimas contusões ao longo da carreira, um derrame articular na cabeça do fêmur (osso que percorre a coxa) que ele diz não ser “nada grave”.

Dentro ou fora de cena, o coreógrafo prova com Carta ao Pai que Kafka faz um bem danado à Cia. Borelli de Dança. E vice-versa.

Carta ao Pai – Estréia nesta quinta-feira, às 20h, na Galeria Olido (Sala Paissandu) – av. São João, 473 (2º andar), São Paulo. Tel.: 3331-8399. Sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Entrada franca. Capacidade: 139 lugares. Duração: 55 minutos. Censura livre. Até dia 23.




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