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Estréia em São Paulo Eros, longa formado por três histórias
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
07/10/2005 | 08:37
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Filme em capítulos pode até ser desprezível como obra de arte, mas nunca como evento, dado que os diretores elencados para uma tal jornada gozam de certo renome internacional para cumprir com a coleta seletiva dos produtores. Mas nenhum deles é como Eros. Afinal, nenhum tem Michelangelo Antonioni, ausente do cinema desde Além das Nuvens (1995). Ver o cineasta italiano em ação, que sofre com dificuldades de locomoção desde o derrame sofrido em 1983, já é por si só motivo justificável para ocupar uma poltrona da sala.

Eros, conjunto de três visões sobre o amar e o acasalar, embarca na onda da autoria intercontinental com três diretores de nacionalidades distintas, cada um responsável por 30 e poucos minutos de filme. Além de Antonioni, foram convocados o norte-americano Steven Soderbergh e Wong Kar-Wai, natural de Hong Kong. Como interlúdio para unir os segmentos de cada diretor, umas gravuras primitivas que ilustram momentos de amor musicados por Michelangelo Antonioni, composição e voz do baiano Caetano Veloso. Entreatos tão dispensáveis quanto portadores de mau gosto próprio de quem quer verniz de primeira a partir de matéria recauchutada.

Tudo soa meio tributo a Antonioni, como se o projeto considerasse Eros o canto de cisne do diretor, aos 93 anos. Talvez sim, talvez não. Certo é que incomoda esse oportunismo, essa atmosfera de réquiem disfarçado de homenagem.

Antonioni dá de ombros. Faz de seu curta, A Perigosa Linha das Coisas, extensão meio torta de sua filmografia. Dois amantes (Christopher Buchholz e Regina Nemni) não se entendem mais e ele aproxima-se de uma vizinha (Luisa Ranieri) que conheceu a beira-mar. A história é isso e ponto.

Assim, o italiano radicaliza de modo sinuoso sua indiferença narrativa com a ação e a acentuação da imagem como suplemento de reflexão. Realiza um curta segmentado entre os ambientes por onde circulam seus protagonistas, delega a esses cenários a função de santuários de meditação sobre o amor e seu prazo de validade. E Antonioni procura um sentido contemporâneo para sua obra. O carro do protagonista, um desejável esportivo, passa com dificuldade por cenários rústicos como portais e pontes. Teria o progresso da linguagem uma velocidade inadequada às necessidades da linguagem?

Eros prossegue com Equilíbrio, obra com a qual Steven Soderbergh procura uma textura meio David Lynch, pela via cômica. Um publicitário (Robert Downey Jr.) descreve a seu psiquiatra (Alan Arkin) curioso sonho com uma linda mulher. O analista, por sua vez, parece mais interessado em eventos que ocorrem do outro lado da janela. Soderbergh confunde real e onírico – inclusive na distinção de contraste, ora colorido, ora preto-e-branco – e relativiza o desejo e os objetos que o representam.

A grande qualidade de Equilíbrio é justamente a piada final com o extracampo – ou seja, eventos que ocorrem fora do enquadramento. Qualidade que é requintada em A Mão, o curta de Wong Kar-Wai. Um alfaiate (Chen Chang) dedica devoção ilimitada a uma cortesã (Gong Li) e lhe confecciona os mais estonteantes vestidos. O diretor de Hong Kong contrasta o amor juvenil e o amor enquanto manifestação da decadência. Seus enquadramentos, que não exploram a totalidade figurativa das cenas, deixam o que repousa fora do quadro comentar sobre o que é nele mostrado, narrado. A Mão é o mais triste, o mais belo, o melhor que Eros – que não deve ser entendido como unidade e sim como diversidade – tem a oferecer.

EROS (Idem, Estados Unidos, Itália, Hong Kong, China, França, Luxemburgo e Inglaterra, 2004). Dir.: Michelangelo Antonioni, Steven Sobderbergh e Wong Kar-Wai. Com Christopher Buchholz, Regina Nemni, Luisa Ranieri, Robert Downey Jr., Alan Arkin, Gong Li, Chen Chang. Estréia nesta sexta-feira no Espaço Unibanco 1, Sala Uol, HSBC Belas Artes 2, Reserva Cultural 1 e Unibanco Arteplex 7. Duração: 104 minutos. Censura: 18 anos.

Quem é quem

Michelangelo Antonioni, 93, Italiano
Ao lado do sueco Ingmar Bergman (87 anos), é dos raríssimos cineastas ainda vivos a merecer o título de mestre. Começou com documentários nos anos 40, encharcado pelo neo-realismo italiano. Mostrou a que veio com a trilogia formada por A Aventura (1959), A Noite (1960) e Eclipse (1961). Sua obra trata de amor e como esse sentimento, alicerce de valores morais, aprisiona o homem na modernidade.

Seu nome foi associado a termos como "tempos mortos" e "incomunicabilidade".

Emprega os movimentos de câmera e a montagem como estimulantes da ponderação, e não só como elementos funcionais da narrativa. Filma não somente personagens, mas caminhos, trilhas, repousos, lapsos; enfim, o tédio ao qual o homem e (principalmente) a mulher foram atirados no século XX. Com Blow-Up – Depois daquele Beijo (1966), questiona as suposições que a imagem insinua. Fez também As Amigas (1955), O Deserto Vermelho (1963), Zabriskie Point (1970) e O Passageiro – Profissão: Repórter (1975).

Steven Soderbergh, 42, norte-americano
O problema mais sério do diretor que viu a luz do dia com sexo, mentiras e videotape (1989) – vencedor da Palma de Ouro em Cannes – é justamente a seriedade. Quando o tema demanda gravidade, lá vem Soderbergh com suas estilizações fora de hora. Vide Traffic (2000) e sua paleta de cores carregada de julgamentos éticos e étnicos; vide Erin Brokovich (2000) e a beatificação da ativista interpretada por Julia Roberts; vide Solaris (2002) e a procura pela desarticulação do tempo, inspirado pelo original de Andrei Tarkovski.

Agora, quando Soderbergh desliga o seu condicionador de suntuosidade, eis que surge uma pequena maravilha do cinema norte-americano. Uma obra que resulta de intensa liberdade, de bom humor singular e com uma relação lúdica entre narrativa e técnica. Começou de forma inócua com Irresistível Paixão (1998) e intensificou-se com o par Onze Homens e um Segredo (2001) e Doze Homens e Outro Segredo (2004), duas jóias de raro (e cínico) brilho.

Wong Kar-Wai, 47, chinês
No cinema de Kar-Wai, tudo é bonito, tudo é bem cosido, tudo é visivelmente maravilhoso. Mas a intenção do cineasta é massagear as vistas, é persuadir por meio do encantamento visual? Jamais. Os vestidos de suas personagens, os papéis de parede de seus cenários, a timidez encantadora de seus personagens masculinos, seus enquadramentos retorcidos;

tudo é parte de uma idéia, parte de uma concepção do mundo enquanto mercadoria e como o homem está sujeito a isso. Sujeito e despreparado, porque ele se refugia em amores sem a compensação usual da fórmula romântica e em espaços fechados, em cômodos claustrofóbicos.

Amores Expressos (1994) e Happy Together (1997) traziam tais elementos, retificados em Amor à Flor da Pele (2001), seu mais conhecido filme, em que a protagonista e seus maravilhosos figurinos representavam por si só, sem interferências para além da imagem, o desejável e o inacessível, a beleza e a decadência, novamente retomados no futurista 2046 (2004).




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