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Albergues padecem com
sujeira, segurança e vagas
Willian Novaes
Do Diário do Grande ABC
16/05/2011 | 07:00
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A triste realidade de quem mora na rua continua para os que passam as noites em albergues no Grande ABC. As moradias provisórias têm acomodações imundas, insegurança e há déficit de vagas.

A queda da temperatura e a proximidade do inverno são os motivos principais para o aumento da procura, além do medo de ser agredido ou queimado por desconhecidos. É preciso ser persistente para conseguir descansar em um lugar que deveria ter as mínimas condições de higiene e segurança, mas não tem.

A equipe do Diário percorreu os cinco abrigos na região e constatou que a situação não é nada fácil para quem dorme nestes espaços. Também presenciou o consumo de maconha, cocaína e bebidas alcoólicas.

Em Ribeirão Pires, na Casa Acolhida, na Vila São José, o repórter não passou do portão. "Não tem vaga. A casa está lotada, você deve ir para outra cidade", disse uma assistente social, sem abrir chance para diálogo.

Na região central de Santo André, na Casa Amarela, não foi necessário sequer preencher cadastro ou passar por entrevista com assistente social. Os responsáveis anotaram apenas o número da carteira de identidade e a vaga foi concedida após duas horas de espera. A demora é uma das principais reclamações dos usuários.

"Qualquer um dorme aqui, depois roubam as nossas coisas e ninguém faz nada", comentou Alexandre, 40 anos.

Em Mauá e Diadema, os moradores em situação de rua reclamam da falta de espaço nos abrigos. Quando há lugares disponíveis, os usuários dizem permanecer "espremidos" durante a noite.

 

IMUNDÍCIE

As péssimas condições dos banheiros é o que mais chama a atenção. Pias quebradas, privadas entupidas, mau cheiro e chuveiros desligados são características comuns aos albergues.

Na Casa Samaritano, em São Bernardo, entidade conveniada à Prefeitura, a reportagem constatou que os ‘hóspedes' utilizam os banheiros sem qualquer privacidade. Não há portas nas cabines. Enquanto um homem usava a privada, os demais esperavam que ele terminasse para entrar na cabine encardida.

Nos quartos de dormir, as condições também não são boas. Falta ventilação, as roupas de cama são velhas e os cobertores são de péssima qualidade, além do mau cheiro e da falta de educação dos próprios abrigados.

No meio da madrugada na Casa Samaritano, em São Bernardo, um homem levantou-se, foi até o canto da parede e urinou. Foi xingado e ameaçado.

Os colchões em alguns casos são tão finos que se dorme encostado nos estrados de madeira.

 

Rapaz apaixonado transformou abrigo em moradia

 

Atrás de uma paixão, sem dinheiro no bolso e com um pouco de sorte. Assim está sendo a estadia de Carioca, 29 anos, em São Bernardo. O rapaz loiro de olhos verdes deixou emprego e casa no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, para seguir uma mulher.

Ao desembarcar no Centro da cidade, em pleno show do cantor Zé Ramalho, na comemoração do Dia do Trabalho, ele percebeu, após passar a ressaca, que não tinha onde ficar.

"Estava um frio terrível, e a mulher falou que estava indo para a casa do ex-marido para encontrar com os quatro filhos. Foi aí que percebi o que tinha feito. Mas não importa, gosto dela e vou ficar até quando der", sustentou Carioca.

O resultado foi buscar apoio na Casa Samaritano. O local precário está sendo sua residência temporária. "Minha família nem imagina que estou em um lugar desses", comentou.

O emprego foi encontrado no dia seguinte à chegada em São Bernardo, em um comércio que está em reforma. "Minha vida era outra coisa, trabalhava em um quiosque e agora estou em obra. Mas o importante é que logo vou conseguir alugar uma casa para levar essa mulher."

O rapaz contou que a paixão teve início no fim do ano passado. Carioca passou dois anos e oito meses na prisão por crime que se arrepende até hoje. "Agredi uma garota e minha vida mudou para pior, perdi minha esposa e meus filhos", relatou.

Carioca se destaca entre os demais albergados, parece ser um dos poucos a estar em sã consciência. Como a maioria, fuma compulsivamente.

"Às vezes imagino que estou em outro lugar para suportar algumas coisas." (Willian Novaes)

 

A experiência de perder tudo

 

Nos albergues, encontra-se todos os tipos de gente. Alguns desiludidos, outros viciados e na maioria das vezes, bêbados.

Mas existem casos, mesmo que raros, de pessoas que perderam tudo e correm em busca de uma vida melhor. Como o desempregado Marcos Rogério Oliveira, 42 anos, que desembarcou em Mauá, no início do mês, apenas com a mala e muita vontade de trabalhar.

A promessa era fazer a vida na Capital, depois de deixar a pequena Cianorte, no Paraná, para trás. O sonho de conseguir emprego com a ajuda dos familiares foi abandonado no primeiro dia.

"Eles (família) me olharam de um jeito estranho e já me disseram que não tinham condições de me sustentar por muito tempo", comentou, emocionado.

Marcos, assustado com a recepção, deixou a casa dos parentes no bairro Guapituba, em Mauá, e foi parar no Centro de São Paulo. Lá, trabalhou por dois dias em uma obra em troca de moradia e alimentação e depois resolveu voltar para a residência dos tios para retirar a mala.

Sem destino, após andar pela manhã da última quarta-feira e até mendigar para conseguir dinheiro para o almoço, ele foi informado sobre a existência do albergue.

O homem magro e pequeno foi o primeiro da fila para o jantar e o descanso. "Não sei o que será da minha vida. Não tenho mais nada. Mas vou encontrar logo um emprego e dar volta por cima".

Sobreviver nas ruas, para Marcos, é uma das batalhas que enfrentará para conseguir melhorar de vida.

"Hoje não tenho nada, mas no passado já fui dono de empresa. Quem sabe não consiga voltar a ter alguma coisa?". (Willian Novaes)

 

São Bernardo vai melhorar acolhimento

Questionadas sobre a precariedade dos albergues, as prefeituras de Diadema, Santo André e São Bernardo garantiram que têm projetos para melhorar o serviço prestado a pessoas em situação de rua.

A Prefeitura de São Bernardo afirmou que irá contratar mais entidades para realizar o trabalho hoje feito exclusivamente pela Casa Samaritano. Sem fornecer prazos, a administração disse que os editais estão em fase de elaboração.

São Bernardo explicou que, em 2009, a Casa Samaritano recebia 35 pessoas por noite. Após reformas e ampliação, a entidade conveniada passou a ter 150 abrigados. A estrutura oferecida, no entanto, é insuficiente, reconheceu a Prefeitura.

Em Diadema, o albergue Casa do Caminho recebe 40 pessoas por noite, 35 homens e cinco mulheres. Uma das condições para o acolhimento é que o interessado esteja sóbrio.

A Prefeitura também conta com o Projeto Viver Melhor, destinado a albergados que têm vínculos com a cidade. Os usuários podem permanecer por até um ano e têm à disposição acompanhamento psicológico e social, além de encaminhamento para tratamentos médicos.

Em Santo André, a Prefeitura informou que o Centro de Referência Especializado de Assistência Social, mais conhecido como Casa Amarela, atende até 100 pessoas por dia.

A administração disse que irá apurar as queixas relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas, má conservação do local, e a falta de cadastro para pernoitar, constatadas pela equipe do Diário.

A Prefeitura, no entanto, rebateu às críticas quanto à qualidade dos alimentos servidos pela Casa Amarela no café da manhã. O cardápio, afirmou a administração, é composto por café, leite e pão com muçarela. Não foi isso que a equipe do Diário encontrou após passar a noite no abrigo. O repórter comeu bolachas murchas e café com leite morno.

Ribeirão Pires disse que a responsabilidade do serviço oferecido é da entidade que mantém a Casa da Acolhida, e não quis se pronunciar sobre a falta de vagas.

A Prefeitura de Mauá não respondeu aos questionamentos. São Caetano e Rio Grande da Serra não oferecem o serviço. (Willian Novaes)

 

Repórter passou duas noites abrigado

 

Não encontrei problemas para entrar no abrigo em Santo André. Nada me foi perguntado ou exigido. Logo na entrada, o responsável pelo local anotou o meu nome e me deu uniforme, toalha e o número da cama, 35.

A primeira cena absurda que presenciei foi ali. No sanitário, dois homens abriam a boca de um cachorro e o dono servia dose de pinga na tampa da garrafa para o animal. A assistente social invadiu o local e confiscou a cachaça.

Na hora do jantar, o mesmo homem que serviu talagada de cachaça para o cão dava escondido parte de sua comida para o animal, dentro do refeitório onde outras pessoas se alimentavam.

Às 22h, as luzes foram apagadas. Foi quando começou a sinfonia dos corpos. Os "músicos" não se cansam e o cheiro das composições desafinadas impregna o quarto. Como a ventilação é insuficiente, o clima se transforma em zona de guerra.

No café da manhã são servidas bolachas, pão com manteiga amanhecidos e café com leite e chá mornos. Por volta das 6h, os homens começam a sair e a conversa voltou para o assunto predileto deles, "Cadê a minha pinga?".

Em São Bernardo, foi preciso passar por assistente social para conseguir vaga na Casa Samaritano. Peguei as filas para o jantar e aguardei ser convocado para os quartos. Cerca de 60 homens esperavam. A maioria dos sem-tetos estava alcoolizada e drogada.

Recebi as primeiras instruções de um rapaz simpático, abrigado como eu. Cheio de gírias, me informou que para ficar na "favela" é preciso respeitar as ordens e ficar de olho nas minhas coisas.

Existem placas informando que é proibido o consumo de bebidas alcoólicas, mas os usuários não ligam muito para isso e bebem tranquilamente. Encontrei pessoas fumando maconha e cheirando cocaína no banheiro.

Após as refeições, uns contavam histórias de como é viver nas ruas, outros cantavam música caipiras e alguns falavam do mundo do crime.

Um grupo de evangélicos tentava pregar a palavra do Senhor. Cerca de dez homens acompanhavam o canto dos hinos, sem prestar muita atenção,

Por volta da meia-noite, após assistir o jogo de futebol, um dos "funcionários-albergados" veio me buscar.

Primeiro me indicou uma cama no alto, no meio dos 35 beliches. Depois de encontrar uma posição para segurar a minha mochila e dormir, o "dono" da cama me obrigou a sair. Levantei e fui para outra. Após 15 minutos outro "dono" do beliche chegou. Mais uma vez levantei e parti para a cama debaixo.

Ao deitar, sentia como se estivesse acomodado direto no estrado de madeira, o fino colchão não fazia diferença. O cobertor grudava no corpo e o lençol e o travesseiro estavam fedidos. O barulho infernal e o fedor não pararam até o dia amanhecer; a sensação era de asfixia. (Willian Novaes)

 

 




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