Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
Dividir é a palavra-chave da família Lemes
Daniel Tossato
Do Diário do Grande ABC
30/03/2018 | 07:00
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O tradicional almoço de Natal oferecido por Maria do Carmo Ribeiro Lemes, mais conhecida como Dona Cotinha, 91 anos, e pela família completará 20 anos no dia 25 de dezembro. Na primeira ceia, em 1998, apenas 40 crianças participaram do evento, com comida preparada no forno à lenha por Dona Cotinha. Em 2017, o almoço reuniu 5.000 pessoas, que foram alimentadas com a mesma dedicação. Filho mais velho de Dona Cotinha, Benedito da Silva Lemes, 65, o Ditinho da Congada, já trilha o caminho aberto por sua mãe para que a ação se perpetue no Parque São Bernardo.

Como nasceu a ideia de servir almoço de Natal para pessoas carentes?

Quando éramos crianças, minha mãe, Dona Cotinha, e meu pai resolveram sair de Cordislândia, em Minas Gerais, e tentar a vida aqui em São Bernardo. Éramos bem humildes e quase nunca conseguíamos realizar um almoço de Natal com muita fartura. Após estarmos estabelecidos, quando atingimos a juventude, meu irmão revelou a vontade de dividir o pouco que tínhamos com algumas pessoas que também não podiam se alimentar dignamente. Meu pai e minha mãe aceitaram e isso passou a envolver a família toda. Desde então essa empreitada se tornou nossa missão

O próximo Natal será o vigésimo em que a família Lemes prepara almoço para os mais necessitados. O que isso significa para vocês?
É uma grande felicidade ter dado início a esta ação. Em dias de Natal não tínhamos nada para nos alimentar e eu passava na casa dos meus amigos para comer. Isso me deixava tão chateado que comecei a questionar Deus. Minha mãe dizia que o mais importante eram os filhos, apesar de termos bem pouco. Em uma conversa com meus irmãos, um deles disse: ‘Um dia teremos tanto que poderemos dividir com a pessoas’. No início eram 30, 40 crianças. Começamos a abrir as portas para toda a comunidade, e hoje atendemos entre 5.000 e 7.000 pessoas por almoço. Queremos que o número aumente cada vez mais. Entendemos que a ceia é uma maneira de agradecer tudo que conquistamos e fizemos aqui na região. As crianças chegam, almoçam, ganham presentes. Elas têm contato com coisas boas e positivas. Não queremos somente alimentá-las, queremos também confortá-las com muito carinho e amor.

O senhor e Dona Cotinha esperavam se tornar tão famosos por realizar esta ceia?
Todo mundo passa aqui e cumprimenta Dona Cotinha. Agradecemos muito a cada um que passou por aqui para ajudar, doar e participar. Minha mãe já preparava esse tipo de almoço lá em Minas quando ainda era uma criança e ajudava a tia dela. Dona Cotinha não é só conhecida aqui em São Bernardo e no nosso bairro, pois lá de onde ela veio também é lembrada e reverenciada. As pessoas reconhecem a força de uma mulher que parte da terra natal para vir para uma área industrial atrás de algum objetivo. Se ela é conhecida é por mérito próprio. Até hoje, com 91 anos, Dona Cotinha ainda está no comando desse almoço tão especial.

Dona Cotinha está prestes a completar 91 anos e, mesmo assim, ainda acompanha a família no tradicional almoço de Natal. De onde vem esta energia para continuar à frente dessa ação?
A energia de minha mãe vem primeiramente de Deus. Ele que dá as condições para que ela possa continuar, ao menos, supervisionando. Sabemos que ela leva muito em consideração os conselhos que seus pais deram a ela. Até hoje Dona Cotinha cita suas palavras. Fazer esse almoço é sempre lembrar de nossos antepassados. E também há o sentimento de estar realizando uma boa ação.

Dona Cotinha tem oito filhos, 11 netos e nove bisnetos, mas também é conhecida como a ‘mãe do Parque São Bernardo’ por tudo que realizou no bairro. Como o senhor encara essa homenagem?
Tudo na vida tem os dois lados da moeda. Há as conquistas, mas também há os percalços e os obstáculos. Sozinho ninguém consegue nada. A credibilidade é fundamental para atingirmos nossos objetivos. Minhã mãe não conheceu o pai. A mãe dela criou os quatro filhos de maneira humilde. Minha mãe é um dos seres mais perfeitos que existem, não é por ser minha mãe. Uma mulher educada, que fala de forma mansa e nunca a vi se exaltar com ninguém, mesmo em momentos difíceis. Minha mãe é uma prova viva de que as pessoas nascem com bom coração. Todo mundo a reconhece. Se não for como Dona Cotinha, pode ser como mãe do Ditinho da Congada. Moramos aqui há 45 anos, fomos a oitava família a chegar neste bairro e a primeira a ter energia elétrica. Dividimos a energia elétrica com os vizinhos. A boa ação está enraizada em nossa família desde sempre.

Quantas pessoas ajudam a realizar os almoços de Natal?
No dia contamos com uma média de 80 voluntários. Sem contar nossa família, com mais de 30. Porém, não temos como mensurar quantos doadores participam, já que não temos cadastro. Recebemos doações de Guarulhos, de Santos e de diversos outros municípios do Estado.

Ações como essas que o senhor e sua mãe organizam estão ficando cada vez mais raras. O que o senhor acha que está acontecendo para que isso ocorra?
Está faltando amor no coração das pessoas. Com um pouco mais de afeto esse tipo de ação social poderia ser realizado por mais e mais pessoas. Uma outra coisa importante é que parece que focamos nossa atenção somente em 10% de pessoas que praticam o mal, quando deveríamos prestar atenção aos outros 90% que praticam o bem. Tenho certeza de que há outras centenas de pessoas que realizam as mesmas festas que fazemos aqui no Parque São Bernardo. Infelizmente, a grande imprensa não mostra esse lado e isso está criando muitas crianças sem referência.

Nestes 20 anos vocês têm ideia de quantas pessoas já se alimentaram na ceia que promovem?
É bem difícil calcular esse número. A cada ano que passa o número de pessoas atendidas aumenta. Nós não fazemos um controle rígido de quantas pessoas comparecem ao almoço de Natal. Nós apenas abrimos as portas e esperamos todos com muito carinho. Somente no ano passado foram 5.000 pessoas presentes. Uma coisa importante para ressaltar é que não nos importamos com o número, mas sim com a qualidade. Vale mais a pena alimentar uma só pessoas com o coração do que muitas de maneira fria.

Dona Cotinha ainda utiliza o velho fogão à lenha? Por qual motivo?
O fogão à lenha é o segredo de uma comida bem temperada e saborosa. Desde pequena ela só cozinha em fogão à lenha, então decidimos manter essa tradição. Nunca utilizamos fogão a gás, pois temos a impressão de que o alimento não ficará tão saboroso.

Dona Cotinha está com 91 anos e com parte da vida devotada a praticar o bem. Ela se sente completa ou ainda há algo que gostaria de realizar?
Sabemos que ela gostaria muito que conseguíssemos atender sempre mais pessoas em nossos almoços, pois ela se sente gratificada. Há também o desejo de que esse tipo de ação se perpetue. Nossa família está empenhada em participar e temos certeza que ela fica feliz.

Qual dica a família Lemes daria para quem quer iniciar uma ação igual a essa que vocês realizam no Parque São Bernardo?
Esta é uma pergunta difícil, já que não há uma fórmula mágica para seguir. O que tem que se levar em conta é a índole da pessoa, pois geralmente quem pratica esse tipo de ação social é bondoso por natureza e não espera nada em troca. É preciso ter força para poder lutar pelo bem das pessoas. No caso de minha mãe, acredito que ela encara isso como uma missão. Nossa família toda está engajada em seguir com o que iniciou Dona Cotinha. Os filhos, os netos, sobrinhos e sobrinhas. A vontade de concluir uma ação como esta tem que surgir de maneira natural, talvez esta seja a maior dica.

Toda família participa de ações que visam o próximo.Você, Ditinho, realiza o resgate histórico da Congada e há, também, o exemplo de sua irmã Ana Maria, benzedeira, que atende gratuitamente muitas pessoas todos os dias. O olhar ao próximo é a principal característica da família Lemes?
Com toda a certeza. É olhando o próximo que mantemos o próximo junto de nós, isso é uma via de mão dupla. Minha avó, mãe de meu pai, nasceu exatamente no dia 13 de maio de 1888 – dia da Abolição da Escravatura no Brasil – e só um povo que tem o amor como base poderia sobreviver a uma situação como a da escravidão. O negro já tem enraizado nele a questão de luta e de amor, desde o momento em que o colocaram em um barco e o trouxeram como escravo para cá. Longe de sua família e de sua terra natal. Nós carregamos a luta e a resistência no sangue e estamos transformando isso em boa ação. Há uma frase que sempre me acompanha e que utilizo muito: ‘Os fortes nascem nas minas das dificuldades’. Não é comum uma família negra realizar um almoço comunitário. Na maioria das vezes é sempre o contrário.

O senhor acha que está ocupando o espaço de prefeituras ou outras políticas públicas que poderiam realizar a ação que realizam?
Pelo tamanho de nosso País, pelo povo que temos, se nós tivéssemos gestores responsáveis, não teríamos ninguém precisando de um prato de comida. O grande problema é que o Estado não está conseguindo, então, quando há um lugar vazio, alguém ocupa. O Estado está falido e não conseguiu preencher esse espaço. Estamos passando por um momento onde o poder público está delegando sua responsabilidade para terceiros. Se cada empresário deste País pudesse oferecer mais empregos, esse tipo de problema seria amenizado, porém, eles não pensam assim. Se cada espaço vazio fosse ocupado por pessoas como minha mãe, isso seria o melhor dos mundos.

O poder público poderia ter um papel maior em ajudar a família Lemes a realizar a ceia natalina?
O que nós esperamos é que um dia nós não precisemos mais fazer esse tipo de ação e que surja uma alternativa. Se há pessoas vivendo na rua, alguma coisa aconteceu, pois ninguém quer dormir debaixo de uma ponte e em cima de um papelão. O que nós fazemos aqui é oferecer um prato de comida, mas não é alimentação que a pessoa precisa somente. Às vezes ela precisa de um carinho, um abraço, melhorar a autoestima. Se a família Lemes realizasse o que já realiza e o poder público complementasse com outras coisas, seria bem melhor. Ajuda do poder público é muito comprometedora e engessa a ação das pessoas.

Quando se deu o primeiro contato da família Lemes com o Diário?
Minha primeira memória com relação ao Diário remete ao dia 13 de maio de 1988, quando celebrávamos o centenário do fim da escravidão no Brasil. Eu estava no Paço Municipal de São Bernardo, me apresentando com o grupo de Congada, quando um fotógrafo fez algumas imagens. Desde então começamos a figurar sempre no radar do Diário. Tenho muito a agradecer aos colaboradores do jornal, que sempre estiveram presentes quando precisamos. O Diário foi fundamental para atingirmos muitos objetivos e o temos como um grande parceiro em nossa empreitada.

Ditinho da Congada e o Diário

As raízes da família Lemes se encontram com a criação do Parque São Bernardo, quando decidiu deixar a pequena Cordislância, em Minas Gerais, para tentar vida nova em São Bernardo. Já se vão pouco mais de 45 anos, e a família ainda mantém as tradições que aprendeu na vida simples da roça. Destes 45 anos, 30 já foram documentados pelo Diário, quando Benedito da Silva Lemes, 65, o Ditinho da Congada, foi fotografado em evento que festejava o centenário da Abolição da Escravidão, em 1988. Desde então, as ações da família sempre estampam as páginas do jornal. 




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