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Vida real no pós-apartheid da complexa África do Sul
Ricardo Ditchun
Do Diário do Grande ABC
11/02/2001 | 18:25
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A partir de 1911, foram 80 anos de uma feroz repressão que se tornou cotidiana não só por meio de massacres, torturas, pancadarias e linchamentos, mas também graças a um calculado e medonho projeto de engenharia psicológica que fez muita gente acreditar que é inata a condição inferior do homem negro diante do branco. Assim, mais ou menos, foi a África do Sul ao longo do apartheid (separação, em africâner). Depois veio a posse de Frederik de Klerk na Presidência, a libertação de Nelson Mandela, a volta à legalidade do Congresso Nacional Africano, o Nobel da Paz (para de Klerk e Mandela) e as tentativas de viabilizar um governo multirracial.

Agora, o país volta suas atenções para temas como coalização, fortalecimento da democracia, redução das diferenças sociais entre negros e brancos, questão agrária e, só para piorar a situação, Aids, um mal que atinge cerca de 20% de toda a força de trabalho sul-africana. Esse é o quadro do chamado pós-apartheid e é com ele como pano de fundo que J.M. Coetzee, um dos grandes nomes da literatura contemporânea da África do Sul, compôs Desonra (Companhia das Letras, 248 págs., R$ 26).

Sobre o conteúdo do livro, vale lembrar, antes de outros comentários, que será pouco provável que o leitor brasileiro não encontre lamentáveis pontos comuns com a situação de lá. Mas isso nada mais é do que a luta para enfrentar problemas estruturais que parecem não ter saída. Coisas de países subdesenvolvidos que abrigam em seus territórios ilhas de prosperidade e terras de ninguém. Como sempre, civilização e barbárie.

Coetzee encara tudo isso pelos olhos de David Lurie, 52 anos, divorciado duas vezes, professor de poesia, irônico e branco. Após um fugaz envolvimento com uma jovem aluna, Lurie enfrenta uma espécie de julgamento politicamente correto dentro do ambiente erudito. Mas ele não renega seus instintos e, por isso, ouve um julgamento moral. Assim “desonrado”, deixa a Cidade do Cabo e procura a companhia de sua filha Lucy, isolada com suas verdades em uma fazendola no interior. “Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada lhe valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil...”, escreve Coetzee.

O enfrentamento é inevitável e o leitor experimenta o aumento dessa tensão após cada página lida. Outra característica da narrativa é a notável humanidade dos personagens. Deles (homens, mulheres, jovens, idosos, negros, brancos, bondosos, sanguinários) exalam calor, medo, fraquezas e paixão. E, não bastasse isso, o escritor, que por essa obra arrebatou a mais importante honraria inglesa para a literatura, o Booker Prize, tece uma curiosa rede de relações que também envolve homens e animais.

É começar e não querer parar de ler. Simples e elegante, o estilo de Coetzee cativa e ajuda a arejar o ambiente literário mundial, sedento de composições que não se rendam ao óbvio e que, de alguma forma, reinventem a realidade.




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