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Confissões de um herege contemporâneo
Antônio Carlos do Nascimento
23/11/2020 | 00:01
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A Heresia moderna contempla cidadãos e cidadãs bem ou mal-intencionados, basta apenas aversão, desatenção ou falta de habilidade com o novo. Todas as vezes que me deparo com os ganhos pandêmicos alardeados pelos futuristas em seus argumentos informáticos e “internáuticos” me envolve íntima blasfêmia. 

O herege contemporâneo não contesta credo religioso, mas ao feitio da Idade Média, pode sumariamente ser julgado, condenado e arrebanhado para queimar seus pecados a céu aberto, do que pretendo me proteger.

Quando o showroom do futurismo foi apresentado pelas instituições bancárias, embora fadigado das esperas em suas filas, incomodei-me com o destino incerto dos funcionários e mais ainda com a súbita certeza de que me tornara cliente e bancário sem remuneração, predestinado ao crédito protocolado pelo computador, oferecido em boas condições quando não preciso e ultrajantes quando necessito. 

Talvez o exemplo do parágrafo anterior e minhas atribulações com atendimentos eletrônicos de variados setores tenham criado a aversão futurista que procuro me desnudar parcialmente neste texto, mas não sem expor interrogações.

A flexibilização de horários e a possibilidade do home office são recursos os quais empregadores e empregados entendem como benefícios mútuos que estreitam as chances de relação de trabalho, um festejado resultado pandêmico. Então, telas de aparelhos e uma conexão podem determinar final da linha para salas de reuniões, consultórios médicos, escritórios de advogados e inúmeros outros locais de interações humanas. 

Relembro que o transporte ferroviário foi propositadamente aniquilado nas últimas seis décadas para privilegiar e fazer da indústria automobilística um dos mais importantes pilares da economia mundial. Insano, poluente, porém, sempre com justificativas aceitas por todos. E agora, a economia orbitante dos modelos presenciais pré-pandêmicos migrará para lugar nenhum do cada vez mais restrito universo de trabalho.

No intramuros da saúde a assistência médica em muitos seguimentos e segmentos podem ser eminentemente informatizados e internáuticos. A aferição periódica de níveis pressóricos, assim como exames de rotina relacionados a hipertensão arterial, são exemplos do que pode ter seus números depositados em plataformas e poupar o paciente de grandes deslocamentos para ratificar ou retificar alguma conduta.

Especialmente na saúde pública pode haver enorme otimização no acompanhamento de moléstias crônicas, algumas trocas terapêuticas podem ser revisadas em seus números através do envio dos novos dados após as mudanças, e por que não, a interação visual médico-paciente. 

Em outro plano, mas com as mesmas rédeas, a atenção primária pode finalmente se tornar no que lhe é proposto, a base resolutiva do atendimento de nossa população SUS dependente, com o doutrinamento de seus executores na alimentação de dados que seriam endereçados à atenção especializada, quando necessário. Especialistas poderiam orientar a condução parcial ou integral do caso em questão, solicitando o encaminhamento para consulta presencial quando necessário.

Se considero ganhos para o deficitário financiamento da saúde pública, eu deveria compreender as conquistas de outras searas. Contudo, me aflige a soberba do progressivo moto-contínuo de destinos únicos, a mão de obra humana e as relações interpessoais substituídas pela praticidade em um universo laboral cada vez mais estreito. Barateamos custos eliminando empregos e transferindo pessoas para a insignificância, para além da margem social, sem que lhes tenhamos proporcionado alternativas que não sejam entretenimentos nas telas de seus celulares. 

Mas, conforta-me que minhas conflitantes resenhas tenham sido resumidas em uma só frase pelo poeta e escritor americano Mark Strand: “O futuro está sempre começando agora!” – e precisamos “inicializar” bem melhor.




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