Setecidades Titulo São Bernardo
As mulheres que
vivem da morte

Vinte anos depois, coveiras perderam as contas de quantos
corpos enterraram e quantas ossadas retiraram em cemitério

Por Camila Galvez
Do Diário do Grande ABC
08/07/2012 | 07:00
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"A gente não sabia direito o que ia fazer. Achávamos que era para limpar, varrer, essas coisas." Vinte anos depois, Maria Aparecida Ferreira, 57, Maria de Lourdes Conceição Gomes, 58, Dalva Rocha Lopes, 52, e Ivonete Ferreira da Silva, 59, perderam as contas de quantos corpos enterraram e quantas ossadas retiraram no Cemitério Municipal Baeta Neves, em São Bernardo. Junto a três colegas - duas que já se aposentaram e uma que virou merendeira - elas fizeram parte do grupo das primeiras coveiras mulheres do Brasil.

No cemitério do Baeta, especificamente, as sete faziam o trabalho que antes era unicamente destinado aos homens. Mas ali, não havia nenhum deles. Tudo era feito por elas. Cavar os sete palmos, quando os corpos ainda eram colocados diretamente na terra, era martírio. Se o morto fosse pesado demais, era preciso trabalhar em equipe: onde antes havia quatro para segurar as cordas e descer o caixão, as sete faziam o serviço. "Foi por isso que nunca fomos embora. Porque demos força uma para outra", diz Ivonete, a mais velha das coveiras. Hoje elas dividem espaço com três homens, mas ainda são maioria no cemitério.

Dalva, a mais nova, lembra dos primeiros dias na profissão e do susto que levou ao descobrir o que realmente havia sido contratada para fazer. Ela, que tomou a decisão por impulso e em busca de emprego estável, chegou com a vizinha Maria de Lourdes disposta a encarar o serviço. Mas não foi fácil. "Nas primeiras exumações (procedimento de remoção dos ossos da terra para serem enviados ao ossário), elas me protegiam, porque sabiam que tinha medo de mexer com os mortos. Mas chegou uma hora que não teve jeito, eu tinha de fazer se quisesse ficar."

Cinco meses depois, com as mãos tremulas e rezando todas as orações que a crença na Igreja Católica ensinou, Dalva fez o que tinha de fazer. Prova disso é que continua ali, ao lado das quatro amigas.

RESPEITO - Maria de Lourdes, a vizinha de Dalva, diz que no começo os parentes que chegavam para enterrar familiares estranhavam a presença feminina. De batom nos lábios, unhas pintadas e cabelos escovados, elas chamavam a atenção em um universo que priorizava homens, pois acreditava-se que eles teriam mais força para trabalhar. "Aos poucos os familiares foram percebendo que, além de ter jeito para tratar dos mortos, sabemos melhor que os homens como cuidar dos vivos. Somos mais delicadas e atenciosas, e muitas famílias nos agradecem por isso."

MEDO - Enquanto há gente que sequer entra em cemitério, e faz o sinal da cruz só de passar por perto, Maria Aparecida garante não ter medo. Ela chegou ao local após anos como doméstica, em busca de estabilidade para criar os quatro filhos. Nunca havia pegado uma enxada na mão. "Mas vim com vontade de aprender. Sempre soube separar as coisas. Aqui é trabalho, em casa sou mãe. E às vezes até evito de comentar com algumas pessoas sobre a minha profissão."

Maria Aparecida já havia trabalhado na roça antes de se tornar coveira, mas sentiu misto de curiosidade e medo ao fazer as primeiras exumações. Quando teve de encarar o desafio sozinha, fez o serviço, mas passou o dia todinho chorando. "A gente tem de ter respeito com os mortos."

TIROS - As colegas concordam. E lembram juntas de um dia aparentemente normal, quando enterraram um rapaz que havia sido assassinado. "Já tínhamos colocado a terra por cima do caixão e estávamos guardando as cordas. Foi quando começou tiro para todo lado. Só o que fizemos foi correr para nos esconder na copa", conta Ivonete.

Mais tarde, descobriram que o assassino do morto compareceu ao enterro e, ali mesmo, acabaram também com a vida dele. "Mas é muita audácia, não é? Mata o cara e ainda aparecer no enterro? Por isso que sempre fico em alerta quando enterro gente assassinada. Tenho mais medo dos vivos que dos mortos."

Enterrro do Padre Leo Comissari comoveu a todas

A chuva que caía naquele dia 24 de junho de 1998 não impediu que milhares de fiéis se reunissem no Cemitério Baeta Neves para dar o último adeus ao padre Leo Comissari. "Nunca vi esse cemitério tão cheio. E as pessoas choravam muito, foi uma tristeza", comenta a coveira Ivonete Ferreira da Silva. Padre Leo, como era mais conhecido, foi encontrado morto com três tiros dentro de um carro, em frente a sua casa.

Outro enterro que chamou a atenção das coveiras do Baeta foi do pai-de- santo Tatá Pércio. "A religião é muito diferente, né? Foram quatro homens carregando o caixão enquanto a mãe-de-santo ia na frente lá com os espíritos dela. Aqui aprendemos a respeitar todas as religiões", garante Dalva, que diz fazer oração sempre que realiza a limpeza de trabalhos deixados no cemitério.

Sem saber direito quantos enterros já fizeram na vida, Ivonete, Dalva e as Marias - de Lourdes e Aparecida - garantem já ter chorado em alguns deles. "A gente se emociona com a família, e se for mãe que deixa filho pequeno então, é uma tristeza", diz Ivonete. Mesmo lidando com a morte todos os dias, as coveiras não se tornaram frias. "Todas somos mães e sentimos quando uma criança ou adolescente se vai. A gente se identifica e tem medo", diz Maria da Lourdes.

ELOGIOS

Quem trabalha com as coveiras do Cemitério do Baeta não pode ter preconceito. "Elas fazem o trabalho tão bem quanto os homens, dentro das suas limitações físicas", garante o coveiro João Antonio dos Santos, 46 anos, 12 deles na companhia das meninas do Baeta.

Para Santos, trabalhar com mulheres muda a cara do ambiente. "Elas são femininas, delicadas, e fazem um cafezinho delicioso", brinca.

Para o ajudante Donizor Vilasboas, 55, 38 anos de cemitério, mulheres e homens podem fazer o mesmo serviço. "Se um ajudar o outro, não tem trabalho que não se possa fazer. É o que fazemos aqui."




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