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Rubens Wajnsztejn:‘Cannabis é uma das grandes opções terapêuticas do século’

Neurologista especialista em infância e adolescência, Rubens Wajnsztejn é pioneiro na prescrição de medicamentos à base de cannabis para tratamento de doenças e síndromes psiquiátricas

Por Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
30/12/2019 | 07:00
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Denis Maciel/DGABC


Como neurologista, qual a sua área específica de atuação?
Sou especialista em neurologia da infância e adolescência. Trabalho com doenças neurológicas como autismo, deficiência e epilepsia.

Há quantos anos o senhor atua nesta área? Percebeu alguma mudança no perfil de pacientes ao longo dos anos?
Sim. Sou formado há 40 anos e há 37 como neurologista infantil. A melhora do processo diagnóstico é evidente, bem como o aumento dos quadros neuropsiquiátricos como ansiedade, depressão, autismo etc. Além de um mundo digital que é bom por um lado, mas ruim por outro, pois contribui para as doenças citadas.

O contato cada vez mais precoce com aparelhos tecnológicos, como tablets e celulares, pode ter algum tipo de consequência neurológica?
Sem dúvida. Isso vem sendo alertado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Os pais têm que diversificar o uso dos aparelhos, incluindo atividades físicas que são a base para um desenvolvimento saudável. Sedentarismo é um dos piores desencadeantes de doenças. Para saúde mental são recomendados passeios ao ar livre, atividades culturais como cinema, teatro e leitura de boa qualidade.

É possível falar em um aumento nos casos de doenças/distúrbios neurológicos nos últimos anos?
Sim, em especial o autismo, que tem ligação direta com os fatores epigenéticos, que são as alterações do meio ambiente e da alimentação.

Existe alguma explicação para isso?
Nosso estilo de vida em especial, poluição, alimentação não natural, mudanças climáticas.

Exatamente de que forma isso interfere no aparecimento de casos de autismo?
Esses fatores vão interferir, por exemplo, nas etapas do desenvolvimento neurológico quando o cérebro precisa selecionar os circuitos que existem, o que é chamado de poda sináptica. Isso precisa ser feito e é determinado por mecanismos genéticos e epigenéticos.

Um paciente diagnosticado com autismo terá plenas condições de socialização e desenvolvimento da autonomia ou vai depender do nível de comprometimento?
Depende, sim, do nível de comprometimento causado. Os casos leves terão condições de desenvolvimento adequado e os moderados precisam ser analisados um a um.

Nos últimos anos, o que pode ser apontado como evolução no tratamento de doenças/distúrbios neurológicos?
Com certeza a genética, tanto no diagnóstico quanto no tratamento. Houve uma grande evolução também nos exames para identificação das doenças e em tratamentos não invasivos como as cirurgias usando tecnologias novas.

Enquanto professor, quais foram as principais mudanças no que é ensinado aos futuros médicos do ponto de vista de tratamentos em comparação ao seu período de estudante?
Especialmente as doenças que não tinham tratamento e agora temos diferentes recursos, como, por exemplo, o uso da cannabis medicinal. Doenças genéticas contam com medicações derivadas de anos de pesquisa, ampliando as triagens neonatais, como o exame do pezinho.

Quando o senhor começou a pesquisar sobre os efeitos da cannabis para doenças e síndromes com efeitos neurológicos?
Em 2010 saíram alguns artigos científicos interessantes sobre o uso do canabidiol e comecei a pesquisar sobre o assunto.

O senhor encontrou resistência entre pacientes quando começou a prescrever o canabidiol?
Iniciei tratando as epilepsias de difícil controle em 2014, quando me cadastrei na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a resistência maior foi dos colegas médicos em aceitar o uso do canabidiol.

Por que os derivados de maconha têm tão bons resultados no controle de convulsões e dores crônicas?
Temos um protocolo de utilizar sempre o termo derivados da cannabis, uma vez que a maioria dos produtos utilizados não vem da maconha e sim do cânhamo, que é uma das espécies da cannabis. Temos receptores canabinoides em todas as regiões do corpo, o que explica a melhora em doenças diferentes. A cannabis medicinal é uma das grandes opções terapêuticas do século XXI.

Como o senhor avalia a recente decisão da Anvisa sobre liberar a produção e a venda de produtos à base de cannabis para fins medicinais?
A decisão da Anvisa foi ao encontro da comunidade científica mundial, que faz o uso medicinal da cannabis com segurança e resultados positivos. Muito importante para o tratamento de milhares de pacientes.

Na mesma decisão, a Anvisa não liberou o plantio da erva para fins medicinais. Quais podem ser os efeitos práticos dessa medida?
Assim como vários outros medicamentos, a matéria-prima para formulação dos remédios não precisa ser fabricada no Brasil, pois isso pode encarecer o produto e não necessariamente facilitar o seu uso. Neste momento, acho que o foco deve ser a comercialização da cannabis para fins terapêuticos e depois pensarmos em produção. Um exemplo são os tênis de marcas famosas que são produzidos em países asiáticos e que têm preço competitivo com qualquer outro produto.

A liberação dos produtos à base de cannabis para fins medicinais ocorre em momento de acentuação do conservadorismo no País. Ainda assim, esse pode ser considerado primeiro passo para a ampliação dos usos da maconha?
Precisamos de uma divulgação ampla que canabidiol não é maconha e que o uso recreativo da maconha nada tem a ver com o uso da cannabis medicinal, que as pesquisas científicas estão seriamente empenhadas em estabelecer a eficácia da substância em várias patologias, incluindo-se tumores.

Algumas pessoas recorrem a produtos artesanais. A eficácia é equivalente à dos itens industrializados?
O único problema dos produtos artesanais é que eles contêm um alto teor de THC (Tetrahidrocanabinol) e, portanto, não podem ser utilizados por qualquer paciente, uma vez que o THC tem efeito psicoativo e o canabidiol, não. Em crianças, o uso de THC não deve ultrapassar 0,2% a 0,3%, na grande maioria dos casos. Em casos excepcionais pode se tentar o uso de produtos com maior teor de THC, pois o efeito a longo prazo pode ser ruim.

Os casos de depressão vêm aumentando e algumas pessoas também têm usado derivados de cannabis para o tratamento. De que forma a substância age nesses casos?
A cannabis medicinal pode ser utilizada em vários distúrbios neuropsiquiátricos como ansiedade e depressão, pois atua aumentando a produção de neurotransmissores. Esse é o principal foco de estudo atual.

A concentração de produção dos itens à base de cannabis em poucas e grandes corporações pode fazer com que os preços não caiam e os produtos continuem de difícil acesso para as famílias mais carentes?
Os laboratórios que produzem os itens de canabidiol buscam no mundo todo reduzir o custo e tornar acessível a toda a população, incluindo-se o fornecimento para as farmácias de alto custo, evitando-se a judicialização (processo que deve ficar como última opção).

O que o Brasil pode aprender com outros países onde os produtos derivados de cannabis para fins medicinais já são legalizados há mais tempo?
Todos os países estão empenhados em definir a eficácia dos derivados da cannabis, uma vez que existem várias pesquisas que demonstram a segurança da medicação. O THC tem efeitos terapêuticos em várias patologias do adulto, mas pode estar implicado em efeitos colaterais a longo prazo. Europa, América do Norte e Ásia são centros em que a utilização dos produtos derivados da cannabis é extremamente frequente e muito promissora.

Na sua avaliação, qual o papel da imprensa para que a sociedade entenda a diferença entre os produtos à base de cannabis e a maconha?
O papel da informação é absoluto e se constitui na principal ferramenta para esclarecer a sociedade. Conhecer os produtos derivados da cannabis, diferenciando o canabidiol, que não é psicoativo do THC, que, como vimos, também tem efeitos terapêuticos e concentração elevada na maconha, diferentemente das outras variedades da planta como o cânhamo. Somente com a divulgação da imprensa essas informações podem alcançar a população como um todo.

Considerando os atuais custos dos medicamentos e pela experiência que o senhor tem com o assunto, esses produtos podem demorar muito tempo para serem incluídos no rol do SUS?
Acredito que a partir da efetivação dos tratamentos e respostas terapêuticas dos derivados da cannabis, o processo deve se estender a todos os pacientes, como ocorre com todas as medicações importantes na medicina. Isso tudo é parte de um processo e com o canabidiol não é diferente.




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