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‘Quero meu sangue de volta’
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
18/11/2006 | 17:21
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No dia da Consciência Negra, Elza Soares convida Santo André: “Beba-me”. E com o convite, um brado retumbante: “Quero meu sangue de volta”. A cantora faz show nesta segunda-feira, no Parque Central, após a apresentação de abertura de Ieda Hils, às 14h, com entrada franca. E ela quer gritar muito e usar a força do hip hop contra a falsa democracia racial brasileira e contra o comodismo da comunidade negra.

Aos 69 anos, Elza tem autoridade suficiente para reivindicar, e é dura na queda para não esmorecer. Na biografia Cantando para Não Enlouquecer (1997), por José Louzeiro, ela narra o episódio no programa de calouros comandado no rádio por Ary Barroso, quando este perguntou àquela menininha desconjuntada, de vestidinho preso com alfinetes e maria-chiquinha, de que planeta era ela. “Do planeta fome”, respondeu de pronto a garota. E cantou, para alegria do autor de Aquarela do Brasil, que esteve presente em seus primeiros shows.

A biografia fala ainda de seu casamento com o gênio das pernas tortas Mané Garrincha, a quem Elza conheceu quando este estava na Seleção Brasileira na Copa do Chile, em 1962. Naquele mesmo ano e país, ela encontrou Louis Armstrong. Antes disso, foi mãe com 12 anos e viúva aos 18. Fez teatro com Grande Otelo, que queria que ela fosse advogada para “defender a raça negra”. Elza preferiu outro meio.

A cantora dispensa rótulos de sambista, jazzista ou black singer. Canta de tudo e encanta com sua voz enrouquecida. Rock, samba, jazz, blues, e agora hip hop. No show há clássicos e releituras. Na seleção, Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins), Boato (João Roberto Kelly), Edmundo (versão de In The Mood) (J. Garland / A. Razaf), Salve a Mocidade (Luiz Reis), Deixe a Nega Gingar (Luiz Cláudio) e Estatuto da Gafieira (Billy Blanco). O músico Francisco Chagas (teclado e acordeon), faz direção musical. Além dele, acompanham Elza: Nando Duarte (violão e cavaquinho), Vitor Motta (sopros), Carlos Cesar (bateria), Edson Menezes (baixo) e André Verselino (percussão).

Outra música do show é A Carne (Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette), cujo clipe na MTV chamou atenção da “meninada”, como ela se refere, e que Elza lembra ao falar de Consciência Negra. “Não é que a carne mais barata seja negra, muito pelo contrário, ensinou a plantar, a colher, a sofrer e está aí. Mas mudaram os aspectos. Onde estão os negros? Quando mostram negro é nas novelas de época, amarrados, chicoteados, falando ‘iozinho’, ‘iazinha’. Duvido que não haja cientistas negros, advogados negros, intelectuais negros. A gente precisa pôr a cara a tapa, mas não correndo da polícia, não como suspeitos”.

Elza quer ver negros no dia a dia, como todo mundo, e não preservados em cotas. “Eu brinco nos shows: ‘Onde estão meus irmãos?’. É difícil ver negros no Theatro Municipal, nos restaurantes. Este é um país em que eles se escondem, como se nunca tivessem estudado nada. Sinto falta de outros Grandes Otelos. Fala-se em comunidade negra, mas cadê? Existe a fobia de não ter vaga em faculdade. Mas ninguém ajuda ninguém, é cada um por si. Quando se faz alguma coisa é imitando norte-americano. Parece que negro brasileiro tem vergonha de se afirmar. Está faltando é raça”.

Racismo é outra questão fundamental para ela. Elza não vê democracia racial, ao contrário. “O racismo está muito na cara. É só ligar a TV e ver os comerciais, por exemplo. Quando aparece negro, ou mulato, está num cantinho, escondidinho. Chega a ser agressivo. Negro não fala em celular? Não toma cerveja? Ou só serve para fazer história amarrado no tronco? E quando chamam algum especialista para opinar sobre economia, ou outro assunto, queria saber por que não chamam um negro. Até as mulatas não têm mais espaço no Carnaval. Elas vinham na frente da bateria como rainhas, mas cadê?”.

Aos poucos, Elza cobra os séculos de servidão e as marcas de várias formas de violência. Uma cobrança para a esfera governamental, que faz as leis, para a sociedade em geral, para a comunidade e inclusive ela própria, que não se redime de culpa. “Quero meu sangue de volta, quero minha raça de volta. Me paguem o que devem, e a dívida é muito grande, mas ninguém grita. Pelo menos finjam tirar os sinais das chibatadas, que são difíceis de curar”.

O show Beba-me estreou em São Paulo em setembro passado. Vai virar um DVD e CD ano que vem, e Elza é tema de um documentário, também previsto para 2007, de Isabel Jaguaribe.



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