Cultura & Lazer Titulo
Carrancudo porém sensível
Por Cássio Gomes
Do Diário do Grande ABC
28/10/2006 | 18:14
Compartilhar notícia


Era mal-encarado. Maltrapilho. Não parecia que se banhava diariamente. No rosto, daquela barba rala, pendiam cigarros que, em vez de tragados, eram mastigados. Quem diria que hoje, 40 e poucos anos depois, suporte de uma carranca que parece talhada em suas minúcias por algum artesão sertanejo, seria artista com um dos olhares mais bem-sincronizados com seu tempo e o mundo que o circunda? Com a estréia nos Estados Unidos, semana passada, de A Conquista da Honra (mais informações nesta página), voltam-se os olhos uma vez mais para Clint Eastwood, 76 anos, um dos pontos de vista mais autênticos e discernidos do cinema atual. E volta-se a falar novamente, como é regra nos últimos 15 anos, em Oscar para o bom velhinho.

Setentão, sim. Mas ainda um aceno para o mau caminho entre um séquito com mulheres de todas as idades. Um sex appeal que o sexto sentido masculino, uma negação em termos de intuição, é incapaz de entender, mas que sua filmografia talvez explique.

Começou como figurante mudo ou monossilábico – às vezes, não passava de um vulto na multidão – em séries de TV e filmes de terror dos anos 50. Foi com a estréia da série Rawhide (de 1959 a 1966) que começou a ser esculpida a persona de Clint. Machão, do tipo que não leva desaforo e nem calibre frio para casa, olha para o inimigo com uma serenidade que sugere autocontrole e o sucesso repentino do ramo funerário nas cidades por onde passa.

Rawhide foi o big bang do Clint machão. Mas a trilogia de Sérgio Leone – Por um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a Mais e Três Homens em Conflito, filmes que sedimentaram o western spaghetti – foi a obra que realmente cristalizou a fama. Uma reputação ainda polida na série Dirty Harry e sua filosofia “bandido bom é bandido morto” (nos filmes Perseguidor Implacável, Magnum 44, Sem Medo da Morte, Impacto Fulminante e Dirty Harry na Lista Negra).

A máscara da supervirilidade, da testosterona em ebulição foi trocada pelo semblante da consciência artística em sua forma mais completa. Foi coisa que não se deu da noite para o dia, entretanto.

Seu primeiro longa como diretor, o suspense Perversa Paixão (1971), é até meio quadradão. Nada de excepcional. Logo no segundo filme seu, O Estranho sem Nome (1972), já negocia com a figura do caubói solitário que Leone forjou, ao mesmo tempo herói e ruína. Seguem-se outros faroestes (Josey Wales – O Fora da Lei e Cavaleiro Solitário) nos quais Eastwood investiga as motivações dos pistoleiros protagonistas. Inquéritos morais que conduzem o faroeste à extinção como gênero; uma vez elucidado, não há razões para reinvestimentos.

Vieram, entre outros filmes, as exumações de duas personalidades artísticas em Bird (1988) e Coração de Caçador (1990), até a consagração definitiva em Os Imperdoáveis (1992), obra que redefiniu os passos do Clint ator e, sobretudo, do Clint diretor. Era o crepúsculo do western, a morte anunciada de um gênero por um de seus principais artífices e objetos. Objeto? Sim, porque Clint trata seu caubói assim, objeto de admiração que não quer mais ser cultuado, figura trágica, que conhece seu destino embora não o deseje. Acima de tudo, da carnificina e do questionamento moral, Os Imperdoáveis é a introdução da nova personalidade do artista, coordenada entre uma direção de fotografia escorada em contrastes e a assunção da velhice como protagonista. Clint torna-se cronista do crepúsculo.

Crepusculares, moral e socialmente falando. São assim a relação paternal que ele narra em Um Mundo Perfeito (1993); o amor irrefreável de As Pontes de Madison (1995); a confiabilidade em altíssimos escalões governamentais de Poder Absoluto (1997); a burguesia de Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal (1997); e novamente a confiabilidade, agora na justiça, de Um Crime Verdadeiro (1999).

Água parada só cria lodo, já dizia o ditado. Então, Clint inicia novo caminho, que admite um pessimismo crônico, na forma de comédia em Cowboys do Espaço (2000) e de suspense em Dívida de Sangue (2002). Até fazer um dos filmes mais importantes deste século, um drama policial que é metáfora da caduquice da democracia, Sobre Meninos e Lobos (2003). E, maduríssimo, no filme seguinte, Menina de Ouro (2004), já contesta suas próprias certezas filosóficas.

Por tudo isso, Clint é, sem dúvida, voz imprescindível para entender que fim levou este mundo. E, não bastasse, ainda derruba uns queixos por aí. Por bem ou por mal.



Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;