Cultura & Lazer Titulo MOSTRA
Laerte entra no labirinto
para mostrar sua história

Exposição que retrata os 40 anos de trabalho
da cartunista exibe obras e facetas da artista

Por Andréa Ciaffone
do Diário do Grande ABC
30/09/2014 | 07:07
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Divulgação


Laerte Coutinho não é uma pessoa comum. Desde que decidiu viver como mulher, prefere que a concordância pronominal seja feita no gênero feminino. Não importa o ângulo pelo qual se analise a cartunista, ela sempre surpreende e se mostra original, extraordinária. Por isso, o formato da Ocupação Laerte, com curadoria do seu filho Rafael Coutinho, abraçou a metáfora da multiplicidade e usou como inspiração o mitológico labirinto do minotauro. A mostra gratuita, que resgata o trabalho da artista, está no Itaú Cultural (Av. Paulista, 149), em São Paulo, até 2 novembro.

Bem ao gosto da homenageada, o visitante tem total livre arbítrio sobre como será a sua abordagem à exposição e pode decidir por qual das cinco entradas quer começar a viagem pelos mais de 2.000 mil itens entre cartuns, desenhos, quadrinhos, ilustrações e curtas-metragens. Do total, 300 são originais, 400 imagens digitais em tablets e, aproximadamente, 1.500 impressas –, selecionadas entre milhares, com destaque para um painel ao fundo da exposição com exatas 900 tiras que trazem seus personagens mais famosos como Piratas do Tietê, a Muchacha, os moradores de O Condomínio, Deus, Overman, Muriel, a versão travestida de Hugo e Los 3 Amigos – a célebre parceria com Angeli e Glauco.

Laerte falou com o Diário com exclusividade e espontaineidade sobre a exposição. “Diante da mostra, confesso que sinto um certo estranhamento, São sentimentos ambíguos. É evidente que tenho enorme satisfação em ver esses trabalhos e reconhecer neles qualidade. E é exatamente aí que entra a parte sombria da ambiguidade. Porque eles são trabalhos. Não são criaturas, filhos que a gente entrega para o mundo. São trabalhos que foram pedidos e entregues e, com isso, passaram a ser de outras pessoas. Isso gera certa angústia”, diz Laerte, que, desde os anos 1970, trabalhou em veículos de comunicação de maior destaque do País. Alguns, como a Gazeta Mercantil e o saudoso O Pasquim.

“Acho o trabalho na imprensa parecido com trabalhar em um restaurante. Você faz o seu melhor e põe na mesa. As pessoas é que avaliam e dizem se estava bom ou se precisava de mais disso ou daquilo. Não há como controlar a reação das pessoas ao trabalho da gente. É tudo produzido para consumo imediato. Talvez seja por isso que o jornalismo tem tantas metáforas com a linguagem de cozinha”, analisa.

Sobre essa questão do tempo, Laerte se recusa a comparar eras e cita a mãe do cartunista Ziraldo. “Quando alguém perguntava como era no tempo dela a resposta vinha rápida: meu tempo é o tempo todo. Adortei isso para mim”, diz a cartunista espantando qualquer tipo de nostalgia.

Ao 63 anos, Laerte está vivendo a plenitude da descoberta de si mesmo, agora como mulher. Quem acompanhou suas tirinhas de 2004 em diante, percebeu que havia alguma coisa em transformação. Em 2009, ela se montou, pela primeira vez, com visual de mulher. Gostou tanto que adotou o cross-dressing em tempo integral.

“Me vestir de mulher foi uma alegria. Curti e ainda curto muito os vestidos, os saltos, os esmaltes. A parte difícil foi me perceber mulher, compreender isso e aceitar. É uma questão de gênero. Não tem a ver com homossexualidade. A atração por homens eu já sabia há muito tempo que tinha”, conta Laerte. “Depois de passar por todo esse processo interno, revelar para as pessoas que ia me vestir como mulher, defender minha posição e enfrentar as objeções foi ‘sopa’ para mim”, conta.

Visão política faz parte da trajetória e está em projeto futuro

Laerte assegura que não tem nenhum desconforto com seu passado masculino. “Sou a mesma pessoa. Não tenho problema com o meu estilo de vida anterior. Estou envolvida na causa do LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero), mas é sem sacrifício”, conta a cartunista, que conhece bem a anatomia do engajamento político.

Em 1978, criou o personagem João Ferrador para a publicação do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo.
Nos anos 1980, fundou a Oboré, agência especializada em produzir material de comunicação para os sindicatos. Ao que tudo indica, essa intimidade com a política vai aflorar novamente no seu novo projeto de livro para a Companhia das Letras, ainda em fase de amadurecimento.

“Comecei a construir o roteiro que tem caráter autobiográfico, embora não seja uma autobiografia. Terá um espírito narrativo, que mistura memória e criação e trará acontecimentos políticos e sexuais da minha vida e do País. E não necessariamente o sexual da minha vida e o político do País. O Brasil é um País muito sexual e eu tenho visão política. O País e eu passamos por poucas e boas nas últimas décadas e isso é bom tanto para curtição como para reflexão”, analisa a artista, que considera um avanço social importante o fato de que hoje, no Brasil, as pessoas conquistaram o direito de protestar quando se sentem agredidas.  




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