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Cai o ministro
Rodolfo de Souza
23/04/2020 | 00:01
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Era uma vez, no distante e inconcebível reino do Ó, um ministro que, por causa de uma peste, acabou por ter sua imagem mais em evidência do que tinha a do rei. Posava, o tal, como um sujeito bondoso, justo e extremamente preocupado com a saúde dos súditos do vasto país. Claro que não tencionava melindrar o monarca, com seu perfil nada comparado ao dos demais ministros do reino, gente mergulhada na ignorância servil, tatuada em seus cérebros unicamente para marcar o ritmo de seus passos. 

E foi o comprometimento do homem da saúde para com o bem-estar do povo que o levou a se destacar no cenário político da nação. Saia justa em que ele nunca imaginou se meter, logicamente. Só que isso fez com que o ego de sua alteza sucumbisse ao duro golpe promovido pelo sucesso do outro, sobretudo porque este ganhou fama se contrapondo às intenções reais que pediam o desrespeito ao isolamento das pessoas, embora a cartilha do ministro rezasse o contrário. Segundo ela, as pessoas deveriam permanecer em casa como forma de não propagarem a ação do vírus que vinha causando verdadeiro pandemônio. 

E a birra da realeza continuou a incitar a população do Ó para que corresse para as ruas como fazia antes da epidemia. Sem medo de ser feliz. Chegou a chamar de covarde o camponês ou artesão que não ousasse botar a cara para fora da moradia. Ele mesmo caminhou pelas ruas, foi à padaria, se cercou de gente que apoiava as suas ideias de apreço nenhum pela vida. Povinho, aliás, destituído de um grama de inteligência que o levasse a desconfiar do circo armado bem diante de seus olhos.

E tanta pirraça fez sua majestade, que acabou exaurindo a paciência do nobre da saúde, que pensou logo numa saída. Por certo que sabia da dificuldade em sanar o problema, dada a vocação do rei para com o nada salutar exercício da maldade.

Então o ministro, homem devoto e temente a Deus, decidiu tirar o time de campo. Mesmo porque, ganhara prestígio suficiente para qualquer futura empreitada política que haveria de lhe conceder os louros da vitória. Entretanto, sabia que não poderia abandonar o barco se quisesse levar a cabo tal intento. Certamente seria lembrado como o ministro que vinha trabalhando direitinho em prol do paciente, mas que, em dado momento, o abandonara, contrariando a sua promessa de não deixá-lo. 

Tinha, então, que arranjar um jeito de imputar ao rei tal responsabilidade, o que não seria difícil, tendo em vista as atitudes do monarca, sempre na contramão da ciência e do bom senso. Restava-lhe, então, esperar paciente pela sua demissão. Sabia que não tardaria a acontecer, já que o rei era movido pelo instinto do ciúme e do ódio, previsível conduta, que indicava o momento certo de pular do barco. O momento em que este começaria a afundar, repleto de cadáveres, vítimas da peste que nem ele conseguiria deter. Não tardou, pois, para que sua alteza decidisse pela saída do ministro, com seu irritante discurso de sucesso. 

E, uma vez livre, cercou-se, o ex-chefe da pasta, de companheiros, fez despedida, cobriu de elogios a equipe e deixou o recinto sob aplausos, que a imprensa do reino cobriu e espalhou para os quatro cantos do mundo.

E foi assim que o homem da saúde, outrora pessoa de parca notoriedade, fez história graças à birra de um rei que vinha brincando de governar.




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