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Mutantes chegam ao limite da dor
Por Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
10/04/2005 | 20:32
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Uma nova espécie de humanos toma conta das ruas. O corpo está coberto de tatuagens. Rosto, orelhas, mamilos, genitais foram perfurados, penetrados, infiltrados por aparatos diversos. A pele foi cortada e inflada com bolas de silicone. Eles são mutantes. O corpo é a mensagem. A atividade mutante não se encerra aí. Uma nova etapa de automutilação entrou em cena: a suspensão. Como pedaços de carne em frigoríficos, os mutantes ficam suspensos por ganchos. O metal é preso nas costas, joelhos e peito. A dor é o inimigo a ser vencido.

A vocalista da banda de rock Hovário, Viviana Galdino de Souza, moradora no Parque Real, em Diadema, tinha curiosidade em saber qual era a sensação de ser suspensa. Ela lera revistas especializadas,sabia de referências cinematográficas (Um Homem Chamado Cavalo, Mórbido Silêncio, A Cela), só faltava descobrir quem fazia isso. “Apareceu a oportunidade e eu fiz”, conta. Vivi é uma garota morena, mignon, de 19 anos. Tem oito tatuagens no corpo e oito piercings. Tatuou até partes do corpo, raramente tatuadas, como os joelhos, que trazem um símbolo oriental de significado desconhecido. “No ocidente, isso significa infectante”, revela. “Infectante” é aquele símbolo esquisito que vem desenhado em caixas de material descartável de hospitais, indicando que, se você enfiar a mão ali dentro, pode se contaminar com doenças inacreditáveis.

A suspensão de Vivi aconteceu no ano passado, uma sexta- feira, 27 de fevereiro, no ateliê do Lobão, em Rudge Ramos. O procedimento preparatório demorou uma hora. A pele das costas foi perfurada com agulhas. Pelo buraco aberto, passaram quatro ganchos. O passo seguinte foi transpassar cordas de alpinismo pelos ganchos. As cordas estavam ligadas a uma base de metal com roldanas, instaladas no teto.

Vivi foi, então, suspensa. Ficou seis minutos e meio pendurada. “Dá muito prazer. É uma sensação única”, explica. O prazer, nesse caso, como naquele velho ditado hindu, caminhou ao lado da dor. “Durante uns quatro minutos, senti só aquele prazer da adrenalina. Depois, não agüentei mais. Pedi para descer.” Uma decisão que Wolverine certamente apoiaria.

O bodypiercer Caio Augusto Cereja, um rapaz de 22 anos que como outros integrantes de sua profissão usa cavanhaque, disse que a suspensão lembra uma cerimônia de iniciação. O objetivo, ele afirma, é superar os limites do corpo. Caio ficou 35 minutos suspenso. “Fiquei 15 dias me preparando. Não comi carne vermelha, me alimentei com frutas e verduras. Perdi cinco quilos para subir.” Seis pessoas participaram da preparação. A exemplo de Vivi, ele também foi pendurado pelas costas. “Quando você é suspenso, esquece da dor. A minha pele se descolou do músculo. Eu sentia uma bolsa de ar se formando embaixo do pescoço.” Lá em cima, pendurado, ele ganhou um carona. Uma das pessoas que assistia a cerimônia saltou e agarrou-se nele. “Isso dobra o peso. Puxa muito mais a pele.”

Ao descer, Caio foi deitado em uma maca. Os ganchos retirados e os ferimentos, tratados. O prazo para cicatrização é de seis meses, ele conta. “Depois desse período, a pessoa está apta a repetir a experiência.” Caio fez a modalidade de suspensão chamada “suicidal”. A pose “superman” deixa a pessoa esticada, na horizontal, como se estivesse voando. Para a “superman” são necessários oito ganchos, presos nos joelhos e costas. Balanço final: “Isso me provou que sou diferente das outras pessoas”. Um pensamento que deve acompanhar diariamente o fotógrafo Peter Parker, alter ego do Homem Aranha.

A dermatologista Ediléia Bagatin diz que, em relação aos danos provocados na pele, pode ocorrer uma reação inflamatória ao redor do local em que o gancho foi fixado. “Principalmente se tiver níquel no equipamento e a pessoa for alérgica.” A especialista afirma que, depois do procedimento de suspensão, a pele volta a se colar. “É uma falsa impressão que a pele tenha se descolado do músculo. Existe um descolamento superficial, do tecido subcutâneo.”

Marcos de Carvalho, 23 anos, o Bob, nunca fez suspensão, mas é detentor de um recorde especial. Ele tem aquilo que pode ser o maior alargador de orelha existente no país. São 90 mm de diâmetro de um alargador que parece pneu de velocípede, enfiado em sua orelha esquerda. Na outra orelha, o extensor mede só 35 mm, algo parecido com uma rolemã.

O andreense Bob, um tipo grande e forte, considera-se o próprio Hulk. “Estou em mutação constante.” Ele tem tatuagens nos braços, no peito, na barriga, nos antebraços. Colocou 10 piercings, a maioria de pontas, no rosto. Pôs alargador no nariz e na língua. “O próximo passo é colocar implante”, garante. Não sabe ainda onde vai ser.

A colocação de implantes é como se fosse uma cirurgia. Primeiramente, a pele é cortada. Coloca-se dentro da abertura, feita na pele, uma bola de silicone. Depois é só fechar, com sutura. Na rua, a reação das pessoas que trombam com o mutante Bob varia. Tem gente que fica assustada, aponta, olha. Outros criam coragem e vão falar com ele. “Duas senhoras me pararam na rua, outro dia, e perguntaram se eu era índio.”

Bob é casado, tem uma filha de 5 anos e mora em Santo André. Antes trabalhava com funilaria e pintura. Saiu do emprego, porque não gostava de receber ordens. Hoje, trabalha por conta própria fazendo tatuagens. “Adoro o que faço. Sinto-me muito seguro e sei que é isso que quero fazer pelo resto da vida.”

Com 70% do corpo tatuado, alargadores na orelha e um piercing no mamilo esquerdo, o tatuador Gilberto Campelo, 40 anos, o Kariok, considera-se um ex-mutante. “Pelo que eu tenho visto na rua, estou me achando mais normal do que nunca.”

Kariok conta que tem visto “gente com a cabeça cheia de caroços (implantes), língua cortada, um pessoal que se pendura em ganchos”, por essas e outras Kariok situa-se na categoria das pessoas “normais”. “Você vai ficando velho e enjoado. Perdi até o barato de usar piercing na língua e no nariz. Além do mais, minha língua é curta. Eu batia toda hora o piercing nos dentes (ele põe a língua pra fora e mostra o que ocorria).”

No peito de Kariok, uma tatuagem mostra “a ruína do homem”: uma mulher dentro de um copo e dados de jogo. Na perna esquerda, uma inscrição para afastar o mau-olhado: “Receba em dobro o que me desejastes (sic)”.

Pai solteiro (ele cuida de uma menina de 13 anos), Kariok revela o que quer dizer com suas tatuagens e piercings: “Acredito em tudo e em nada. Na ação e na reação. A mensagem que eu passo é a seguinte: ‘Não estou nem aí com vocês. Querem me aceitar, aceitem. Não vou puxar o saco de ninguém’”.

Os tatuadores dizem que a colocação de um piercing, a aplicação de uma tatuagem, ou outras interferências feitas no corpo significam uma busca de auto-estima, valorização da vaidade e até como pontos demarcatórios de um processo de ruptura.

Para o médico psiquiatra Arthur Guerra, da Faculdade de Medicina do ABC, esse tipo de comportamento pode indicar uma anormalidade e costuma ser mais freqüente em jovens. “É aquele jovem maria-vai-com-as-outras, que segue a onda, que é inseguro em termos de personalidade e usa esses artifícios para se sentir mais forte.” Em sua análise, o psiquiatra acrescenta que existe também falta de valores, como “patriotismo, civilidade, respeito ao próprio corpo, família e amor próprio”.

Tatuar-se, colocar piercings no corpo, pendurar-se, pôr implantes indica que a pessoa tem alguma doença mental?  “Não é loucura, mas significa uma anormalidade. A pessoa tem alguma psicopatalogia. São personalidades frágeis, anti-sociais.”

O sociólogo francês Michel Maffesoli, autor de A Parte do Diabo, debruça seu olhar sobre “discurso teatral dos corpos” dos tatuados e afins, chamando-os de “vetores do diabo”. O diabo nesse caso não é aquele personagem conhecido dos subterrâneos ferventes, mas o ente subversivo, aquilo que incomoda e deixa inquieto o tecido social. Ao contrário dos que vêem uma ameaça nesse comportamento inusual, Maffesoli pressente “energia e fonte de vida”. Como ensina o sociólogo da Sorbonne: “Quase sempre, é necessário um trovão para arrancar o torpor degradante de uma vida insossa”



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