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Quinze anos de submissão ao crack
Por Gabriel Batista
Do Diário do Grande ABC
14/08/2005 | 10:18
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O motorista de ônibus Alfredo tem 40 anos de idade, quinze de consumo de crack. "Me apresentaram o crack como uma droga melhor do que a cocaína", diz ele. Desde então, Alfredo (nome fictício) já perdeu a conta de quantas vezes tentou largar o vício. Hoje, o motorista reflete sobre sua vida e está longe da satisfação: "Trabalhei muito e não consegui nada. Conheci muitas pessoas, mas não valeu a pena. De início, foi bom fumar crack. Depois, não consegui mais dominar. Todo dinheiro que colocava no bolso gastava com pedras (da droga)."

Alfredo vive em Diadema, no Jardim Ruyce. Está afastado do trabalho desde março para se recuperar. Na época, ficou trancado em casa durante uma semana. Não comia e não tomava banho, apenas fumava crack. "Fiquei completamente desnorteado." Freqüenta hoje duas vezes por semana uma clínica de acompanhamento. Não sabe se conseguirá parar desta vez.

"Não posso lhe afirmar que consigo parar, não tenho certeza. Fico preocupado com quando voltar a trabalhar e ter aquela vida agitada. Você pode voltar aqui (na clínica) daqui a seis meses e ter uma boa notícia a meu respeito. Mas também pode ser que não", pensa Alfredo.

Ele cita como exemplo da submissão à droga as três vezes que vendeu seu carro. Alfredo tinha um veículo avaliado em R$ 15 mil e o trocou por um de R$ 10 mil. Gastou com o crack toda a quantia da diferença obtida no negócio. Depois vendeu o carro recém-adquirido. Comprou um mais simples, de R$ 5 mil, e novamente torrou o dinheiro da diferença em pedras da droga.

Por fim, vendeu o carro humilde e ficou a pé. Depois, fez dívidas no banco. Hoje, deve 20 prestações de R$ 400 (R$ 8 mil, no total). "Eu gastava cerca de R$ 1,5 mil por mês em crack, o que representa todo o meu salário. Todo o resto era secundário. Comia qualquer coisa, o que fosse mais barato. Às vezes, não me alimentava, não tinha apetite. Acho que já gastei mais de R$ 100 mil com drogas durante toda a vida", diz Alfredo.

Se for considerado que ele realmente gastou R$ 1,5 mil por mês com o crack em 15 anos, Alfredo pode ter desperdiçado R$ 270 mil em drogas em toda a vida. Hoje, cinco meses sem consumir a droga, ele tem crises de abstinências em que os sintomas mais comuns são vômitos, calafrios e suor excessivo.

Início – Alfredo é uma exceção entre usuários de crack. Geralmente, a pessoa que fuma a droga continuadamente morre em meses ou, no máximo, em um ou dois anos. Alfredo começou a fumar crack quando a droga ainda era pouco conhecida e de difícil acesso no Brasil. Foi no interior de Minas Gerais, em uma cidade turística em que vivia, que ele tragou a substância pela primeira vez. Na época, já era um viciado em cocaína.

"Muitos estudantes usavam drogas na cidade. Um pessoal de São Paulo foi para lá e levou o crack. Era a versão americana da droga, em que nós mesmos produzíamos a pedra." No começo dos anos 90, americanos de São Francisco e Nova York passaram a fumar a cocaína. Eles punham a droga em pó com água em uma colher, ferviam-na e depois fumavam. Não compravam a pedra pronta com os restos do refinamento da cocaína, o que ocorre no Brasil.

Trabalho – Entre os perigos que passou em razão do consumo de uma droga devastadora, Alfredo destaca o trabalho. Ele é motorista de uma empresa de ônibus no Grande ABC. Conta que houve noites em que fumou crack até amanhecer e assim foi para o serviço. Chegou a fumar dez pedras por noite.

"Era perigoso ocorrer algum acidente, minha cabeça não estava normal. Já aconteceu de eu bater o carro (particular) porque fumei e perdi o controle." Alfredo também faltava muito no trabalho, praticamente uma semana por mês. Ele utilizava um copo de água mineral como cachimbo para fumar a droga.

Outra situação de risco relatada por Alfredo é de quando ele ia comprar crack em favelas. "A polícia chegava e eu estava lá, no meio de traficantes e policiais. Já passei por batida policial, já joguei a droga fora para não ser pego com as pedras. Poderia ter sido atingido por um tiro ou ter sido preso", conta ele.

Fornecedores – Alfredo buscava droga com traficantes nas favelas Morro do Samba e Coca-Cola, ambas em Diadema. Às vezes, comprava com algum "colega de rua" ou conhecido. Antes, pagava menos pela droga, que existia em maior quantidade na Região Metropolitana.

No começo deste ano, Alfredo diz que a pedra de crack estava apenas um pouco mais barata que o papelote de cocaína. O motorista diz que nunca teve dificuldades em conseguir a droga. Sempre a encontrou.

Vício – Hoje, cinco meses sem usar crack, Alfredo diz que freqüentemente sonha com a droga. "Às vezes, sonho que estou fumando. Aí sinto toda aquela sensação novamente. Outras vezes, sonho que estou chegando perto da droga."

Ele conta que no fim de semana passado, quando passeava pelo bairro paulistano da Luz, viu algumas pessoas fumando crack embaixo de uma ponte. "Senti muita vontade de ir lá e falar que queria fumar com eles, veio aquilo na minha cabeça. Senti o gosto do crack. Mas consegui me controlar."

O motorista não sabe se algumas dificuldades na memória são resultantes do efeito de anos de consumo da droga. Mas ele conta que tem uma certa dificuldade de puxar informações na memória.




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