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Escombros da Industrial esconde miséria
Cláudia Fernandes
e Rivaldo Gomes
Do Diário do Grande ABC
18/05/2002 | 16:30
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Garrafas de cachaça, papelão, muito entulho, uma caixa d’água velha vazia e um vira-lata dormindo guardando a casa de seu Pedro (*). Dentro do cômodo escuro e úmido, o catador de entulho dorme no segundo andar improvisado. Do lado debaixo só aparecem os dois pés descalços e sujos para fora da cortina feita de um lençol amarelado de encardido. Pedro tem 49 anos e diz que mora lá há uns dez anos. Ele é um dos dez moradores fixos que ocuparam as estruturas que ainda permanecem em pé da antiga Companhia de Construção Fichet-Schwartz Hautmont, na avenida Industrial, falida desde a década de 90.

Os moradores se espalharam pela Fichet. São ex-moradores de rua, carroceiros, prostitutas, travestis e ex-presidiários. Há um ano, seu Pedro acolhia em seu quarto, além dos quatro cães, a moça que todos ali conhecem como Carioca. Mas ela começou a namorar Reginaldo, 22 anos, e os dois resolveram morar juntos. Ajeitaram um quarto na parte superior da empresa e desde então moram lá. Eles vivem em local privilegiado, antiga área administrativa da empresa, de frente para a Industrial, avenida onde a Carioca – que não passa de uma adolescente – cansou de fazer programas antes de engravidar, há seis meses.

A casa de Carioca e Reginaldo está sempre aberta para os amigos. Os visitantes gostam da comida de Carioca e, por isso, na quarta-feira passada ela cozinhava uma panelada de polenta. Os visitantes eram um amigo que diz não morar ali, três travestis, uma prostituta e seu namorado – um corintiano roxo e ex-presidiário que diz ter abandonado a favela do Jardim Elba para viver na fábrica.

O dinheiro alguns conseguem roubando, outros trabalhando na Industrial, outros olhando carro e outros ainda pedindo nos semáforos. Quase todos têm algo mais em comum além de morarem no decadente prédio: são viciados em crack e maconha. Entre um gole e outro de pinga e um trago e outro de cigarro, dão uma pitada no crack no chamado caldeirão do diabo.

O caldeirão fica no outro extremo do terreno. Um galpão com dois sofás pretos velhos e um monte de entulho no canto, onde podem ser encontrados isqueiros quebrados que serviram de cachimbo para a droga e peças íntimas surradas jogadas por prostitutas e travestis. No caldeirão a rotatividade é grande. Não é preciso morar lá para dar um pega (fumar crack). O entra e sai ali é 24 horas. “Às vezes os PMs (policiais militares) entram e vão batendo na gente sem motivo”, reclama o travesti Patrícia, freqüentadora assídua do caldeirão.

“Eu saí de lá porque rolava muita droga e já tive nove overdoses. Na última (há quatro meses), o médico disse que se acontecesse de novo eu morria”, disse Renata, 19 anos. Renata hoje mora em outra fábrica abandonada na Industrial, a 1,5 quilômetro da Fichet, sentido São Caetano. Nos quartinhos espalhados no meio dos destroços moram 11 pessoas.

Renata mora lá com o namorado, o carroceiro João. Ela abandonou a prostituição e diz que hoje só trabalha quando a avó – que chama de mãe e mora em São Miguel Paulista – passa necessidade. “Aí digo para o João que vou trabalhar. Trabalho a noite toda, tiro uns R$ 100 e levo tudo para minha mãe.” Caso contrário, diz que sai de casa e se distrai com os serviços domésticos.

Para tomar banho, fazer comida e mesmo para beber, os moradores pegam água em um poço artesiano no terreno. “A água é limpa. Uma vez mataram um homem e jogaram lá dentro, mas os moradores fizeram uma vaquinha para um homem entrar e limpar a água”, afirmou Renata.

O fundo do terreno dá para uma ruazinha chamada Antônio Raposo. É lá que os catadores de entulho, João, Mussum, Gordo, André e seu irmão Roberto deixam seus carrinhos e organizam, separadamente, o que conseguem pegar na rua.

No terreno todos se ajudam. À noite, se os maridos não estão em casa, as mulheres se reúnem, com receio de ficar sozinhas apenas com a iluminação das velas. Érica tem 26 anos e mora em um cômodo que restou no andar superior. Ela, Renata e a menina e prostituta Débora, 16 anos, se juntam para conversar, comer qualquer coisa, fumar muito cigarro e beber cachaça. Quando os homens chegam, suspiram aliviadas. Gordo tinha ido com João pegar um dinheiro do trabalho que fizeram. Chegaram de mão abanando. “O homem disse que estava sem dinheiro (R$ 20) e que era para voltar amanhã”, conta Gordo.

Érica e Gordo têm quatro filhos que moram com os pais dele em uma chácara em Arthur Nogueira, no interior. Eles foram morar com os avós porque os pais não tinham condições de sustentá-los. “O Gordo já foi motorista. Tem carta de carro e caminhão”, orgulha-se Érica. Na parede da casa deles, Gordo colou um pôster de carro, um Renault Clio, um sonho de consumo impossível.

(*) Todos os nomes dessa reportagem são fictícios




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