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Direito à moradia, para muitos brasileiros, fica só
na teoria; números dizem respeito ao Grande ABC

Vanessa de Oliveira
31/01/2016 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


 Está na Constituição Federal, logo no início, artigo 6º: entre os diversos direitos sociais dos cidadãos, constam a moradia e a assistência aos desamparados. Legislação muito bem colocada, porém, que não se aplica a todos na vida real. No Grande ABC, em cinco cidades (exceto Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, que não informaram), 100.062 famílias almejam um lar digno.

Para muitas, o sonho acontece em meio ao pesadelo de ter que viver em barracos, cercados de lixo, esgoto, sem o mínimo de infraestrutura. Como a dona de casa Verônica Maria Gonçalves Pinto, 50 anos, que mora em um barraco de madeira na Travessa Fazendinha, no Parque Miami, em Santo André. Os quatro cômodos abrigam oito pessoas, entre elas a moradora mais nova, a neta Isabela, 3 anos. Ao lado de um brejo, o espaço sempre alaga quando chove. “Já perdi móveis, as roupas ficam em caixas. A água com esgoto entra e coloca a gente em risco de pegar doença. Fico apavorada”, conta.

A alguns metros dali, a falta de opção obriga a faxineira Maria Aparecida Souza Santos, 38, a também viver em barraco de madeira às margens do Trecho Sul do Rodoanel Mário Covas, com os três filhos – Natan, 12, Maria Franciele, 14, e Francine, 16 – há cinco anos. A família teve de deixar Guarulhos, na Região Metropolitana, em busca de novas oportunidades quando a matriarca perdeu o antigo emprego.

Embora amplos e muito limpos e organizados, os três cômodos não oferecem nenhum conforto: as tábuas que cumprem a função de paredes da moradia já estão velhas e podres, o que resulta em buracos, por onde entram sapos, cobras, insetos e ratos, e as telhas quebradas permitem que a água da chuva alague o barraco. “Não tem o que fazer. Quando chove forte, a gente sai correndo para a casa da vizinha com medo de o barranco ceder”, revela Maria Aparecida.

À beira do km 24 da Rodovia Anchieta, em São Bernardo, Sebastião da Conceição, 57, não esmorece diante de tanta dificuldade. Em um barraco onde o chão de terra se estende até o banheiro, ele vive sozinho e com a mobilidade reduzida: só consegue se locomover de muletas por causa das sequelas de três atropelamentos. Por não ser considerado incapaz, já que não é dependente de cuidados, foi vetado de se aposentar por invalidez. “Tinha que pagar por 15 anos R$ 87 por mês para conseguir a aposentadoria, mas só deu para pagar até agosto de 2012”, lamenta. Apesar de toda limitação, mostra que é um homem de muita crença, o que lhe dá forças para seguir a caminhada. “Vivo pela fé que tenho em Deus. Estou aqui pelos milagres Dele.” Conceição foi o primeiro morador a chegar ao local, junto a um amigo, já morto. Hoje, 64 famílias ocupam espaço que pertencente à Ecovias. A concessionária, que administra o Sistema Anchieta-Imigrantes, move processo para a desocupação, argumentando que ali é área de risco (veja mais ao lado).

Pedro Honório Neri, 53, chegou há três meses no Jardim Pajussara, em Mauá. Veio de Caruaru, Pernambuco, com a mulher e um filho de 14 anos, para fugir da seca. No pequeno barraco que conseguiu erguer com madeiras doadas por amigos, ainda não foi possível construir o banheiro. Utiliza o da casa de um primo que mora próximo. Sem emprego, não consegue dinheiro para concluir a obra. “A gente é disposto a trabalhar, mas não consegue”, queixa-se. “Se eu tivesse estudo, poderia estar em uma situação melhor”, acrescenta, contando que não sabe ler nem escrever.

Mesmo com todos os percalços, é com otimismo que ele segue a vida, até para garantir a sobrevivência. “É uma situação muito difícil, mas a gente pensa em melhorar, pois se pensar que vai piorar, enlouquece.” (colaborou Natália Fernandjes)

Bolsa aluguel atende mais de 5.000

Em quatro cidades da região, 5.885 famílias recebem bolsa aluguel. São Caetano não conta com a iniciativa e Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra não informaram.

Em Santo André, são 748 beneficiários. O valor é de R$ 465, pagos pela Prefeitura.

São Bernardo atende 3.115 famílias, com valor mensal de até R$ 315. Em alguns casos, o governo do Estado arca com 50%, por meio de parceria com a administração.

Diadema tem 1.100 famílias atendidas. Do valor pago, que é de até R$ 420, cerca de 80% vêm do tesouro municipal e 20% do Estado.

Mauá tem 922 atendidos, sendo que 506 são pagos com recursos exclusivos da Prefeitura. O montante é de, em média, R$ 400.

Desempregado, o cozinheiro Ailton da Silva Santos, 43 anos, recebe o benefício desde que um deslizamento de terra destruiu o barraco onde morava, no Parque Miami, em Santo André, há seis anos. “Morei três meses na garagem da minha mãe, porque ninguém quer alugar casa para quem depende de aluguel social”. Outro agravante é o fato de ter de complementar o montante de R$ 465 mensais. “Pago R$ 500 de aluguel e mais R$ 200 de água e luz. Sem emprego, as coisas se complicam.”

Cidadão enumera perdas de móveis, documentos e da própria dignidade

Não ter opção de moradia e precisar construir casebre ao lado de um córrego para onde corre o esgoto é conviver com o risco de enchente e a perda do pouco que se tem.

O catador de material reciclável Jorge José da Silva, 56 anos, morador do Jardim Pajussara, em Mauá, não tem mais documentos nem móveis, perdidos na inundação.

A água entra também pelo teto, com as telhas quebradas na cozinha, como aconteceu na sexta-feira, durante a visita da equipe do Diário.

Em meio ao alagamento do cômodo, a resposta ao ser indagado se sentia-se abandonado pelas autoridades veio em forma de choro. “Mas Deus não desampara os seus filhos”, ressalta. E Silva nem é exigente. Tem um simples desejo, mas para ele, difícil de realizar ganhando apenas R$ 9 a cada venda de recicláveis. “Queria só conseguir arrumar essas telhas e poder ficar no meu canto, sossegado.”

Famílias vivem com o medo do despejo

Não bastasse ter de viver em moradias críticas, famílias convivem com o medo de perdê-las. O casal Cícera Carvalho de Melo, 37 anos, e José Vânio dos Santos Vieira, 36, está há dois anos em barraco minúsculo às margens do Trecho Sul do Rodoanel Mário Covas, no Parque Miami, em Santo André, com a filha Yasmin, 1.

A SPMar, empresa que administra o anel viário, já notificou a família duas vezes para que saia do local. “Por uma questão de segurança dos motoristas que transitam pela via e proteção do sistema viário, qualquer construção não permitida na faixa de domínio deve ser retirada de forma imediata”, alega a empresa. A última ordem, datada de 22 de janeiro, dá prazo de 15 dias para a desocupação.

Cícera chora ao imaginar o despejo, sem ter onde criar a filha. “Peço que Deus não deixe a gente desamparado.”

A SPMar informou que aguarda a decisão judicial de desocupação e que realizará o transporte dos pertences da família para um local indicado.

Na incerteza também vivem as 64 famílias dos barracos situados no km 24 da Rodovia Anchieta, em São Bernardo. A concessionária Ecovias iniciou processo com pedido de reintegração de posse em 2013. “Parte das construções está sujeita a desmoronamento. Já outra parte está à beira da rodovia, colocando em risco os usuários do Sistema Anchieta-Imigrantes”, justifica a empresa.

Os munícipes estão cadastrados para receber apartamentos do Condomínio Residencial Independência, no bairro Montanhão, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. A obra, iniciada em 2012, deveria ter sido entregue em janeiro de 2014. Mas nada ocorreu até agora. Mesmo com acordo entre a Prefeitura e a Ecovias para que a remoção só aconteça após a conclusão do empreendimento, o receio toma conta dos moradores. “Temos medo que a qualquer hora nos tirem daqui”, diz Erivan Ferreira da Silva, 30, que vive com a mulher e três filhos.

A Caixa Econômica Federal afirmou que encontram-se em andamento os trâmites para retomada da obra, com expectativa de conclusão desse processo no primeiro semestre.

Obras não acompanham demanda

Boa parte das famílias que moram em condições subumanas permanecerá nessa situação por bom tempo, já que as obras em andamento não contemplarão toda a demanda.

Em Santo André, por exemplo, que possui deficit habitacional de 32 mil moradias, estão sendo erguidas 96 unidades no Conjunto Habitacional Catiguá. “Estão em obras de urbanização os núcleos Jardim Irene (Cipreste), Jardim Cristiane, Espírito Santo I e Pedro Américo/Homero Thon, que juntos beneficiarão 2.636 famílias”, informa a Prefeitura.

Em São Bernardo, onde é demandada a construção de 38.017 unidades, apenas 2.519 estão com obras em andamento e/ou com início previsto para 2016 (Parque São Bernardo; PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – Alvarenga; Capelinha-Cocaia; Silvina Audi; Saracantan-Colina; Ponto Alto; Independência; Vila Esperança). A previsão de conclusão dos projetos em andamento varia entre o primeiro semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017. “Além disso, estão em fase de contratação mais dois empreendimentos selecionados pelo PAC, aos quais se somam outros quatro contratos do Minha Casa, Minha Vida, que constituem área de reassentamento e que, somados, beneficiam 19 áreas e 7.766 famílias. Destas, 4.144 serão beneficiadas com novas unidades habitacionais”, fala a administração.

Diadema, que tem deficit de 9.345 unidades, listou alguns projetos que estão sendo executados (Joaninha e Iguassu, Naval, Gazuza, Jóquei, Marilene e Vila Popular), mas não informou o número de apartamentos, salientando que não há estimativa de entrega, “devido atraso nos repasses do governo federal e morosidade na análise dos projetos”.

Mauá, que necessita de 20 mil moradias, pretende entregar 196 unidades no Jardim Paranavaí até junho e 840 no Jardim Feital, no segundo semestre.

Já São Caetano, com deficit habitacional de 700 famílias, busca parcerias com a CEF (Caixa Econômica Federal) para atender a este público, mas argumenta que esbarra na dificuldade para encontrar terrenos livres na cidade.




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