Setecidades Titulo Um ano depois
'A justiça não bateu a minha porta, só a violência'

Pai de dentista queimada em S.Bernardo
revela descrença na legislação brasileira

Fábio Munhoz
Do Diário do Grande ABC
12/05/2014 | 07:00
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Andréa Iseki/DGABC


Correspondências acumuladas pelo chão. A vegetação, precisando de poda, toma conta da fachada. Quem passa pela Rua Copacabana, em São Bernardo, tem a sensação de que, há um ano, o tempo parou na casa onde morava a dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza. Aos 47 anos, ela morreu após ser queimada durante assalto dentro de seu consultório, que funcionava nos fundos da residência da família, no Jardim Hollywood. O motivo do crime foi o fato de a vítima ter apenas R$ 30 em sua conta bancária.

Na quarta-feira, um dia depois de a Justiça condenar três dos acusados de participação no crime, a equipe do Diário esteve na casa onde Cinthya morava com os pais e a irmã Simone, hoje com 43 anos. Ela é portadora de deficiência mental e depende de atenção em tempo integral por parte dos familiares.

Passava de 15h quando a campainha tocou. O aspecto deteriorado do imóvel e a demora até que surgisse algum sinal de vida deram a falsa impressão de que não haveria ninguém em casa ou que a família havia se mudado de lá. Passados quase cinco minutos, um senhor grisalho de barba e óculos abre a janela acoplada à antiga porta de madeira e, desconfiado, pergunta o motivo da visita inesperada. O anfitrião é Viriato Gomes de Souza, 72, pai da dentista assassinada. Informado de que se tratava de repórter e fotógrafa, foi simpático, apesar da tristeza no semblante. Vestindo calça preta e uma camisa cinza entreaberta, o projetista aposentado veio ao encontro da equipe e abriu o portão de ferro.

Ele desconhecia o julgamento ocorrido no dia anterior, no qual os acusados Victor Miguel Souza Silva e Thiago de Jesus Pereira receberam pena de 37 anos e 6 meses de prisão, enquanto Jonatas Cassiano Araújo foi punido com 36 anos de reclusão. Eles foram condenados pelos crimes de latrocínio, extorsão, roubo e formação de quadrilha. Um adolescente, à época com 17 anos, cumpre medida socioeducativa na Fundação Casa.

“Fiquei surpreso quando uma pessoa de Catanduva, que era minha vizinha, me ligou e avisou sobre esse julgamento. Pelo que eu sabia, eles já haviam sido condenados a algo em torno de oito anos de prisão”, admitiu. Mesmo com a pena alta, Souza revela descrença na legislação brasileira. “Logo eles estarão nas ruas. Mas essa é a nossa lei. Por que não há mudanças se não atende mais à sociedade?”, questionou.

Contrário à pena de morte, o aposentado diz não saber o que faria se ficasse de frente com os assassinos de Cinthya. “Não gosto de violência”, afirmou, ao avaliar que a barbárie é algo presente apenas na raça humana. “Os animais também matam. Mas somente na cadeia alimentar ou por sobrevivência.” No dia do crime, ele havia saído de manhã e, ao voltar, presenciou a confusão em frente à sua casa, com muitas viaturas, jornalistas e curiosos. “Me disseram que houve um assalto e que ela estava machucada. Mas entrei em casa e a vi morta, queimada, com os braços levantados em posição de defesa.”

Mais que a revolta, a decepção e a sensação de impotência são os sentimentos marcantes na vida de Souza. “Me apego à fé para seguir lutando e cuidar da minha esposa e da minha filha que restou. Minha velhice é só chorar e lamentar o desrespeito comigo e com minha família” A mulher dele, Risoleide Moutinho de Souza, 73, está em tratamento contra a erisipela – infecção bacteriana de pele que se propaga pelos vasos linfáticos. O aposentado luta contra a diabete, doença que já lhe fez perder um dos dedos do pé em razão de necrose.

Hoje, o cômodo onde funcionava o consultório de Cinthya foi transformado em um escritório, onde Souza passa o tempo fazendo desenhos. A solidariedade dos demais moradores do bairro chama a atenção. Enquanto ele conversava com a equipe do Diário, um vizinho passou em frente ao imóvel e estranhou a movimentação. Parou em frente e só continuou a caminhada depois de se certificar que estava tudo bem. “Eles nos dão carinho. Mas não podemos exigir nada. Todos têm seus compromissos”, reconheceu.

APOSENTADORIA

O crime contra sua filha não é o único motivo para que ele tenha dúvidas sobre a eficiência do setor público. Depois de ter trabalhado a vida toda, ele ainda espera receber do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) benefícios relacionados à aposentadoria. “Já são 18 anos lutando e, até agora, não saiu nada.”

A indefinição sobre sua situação junto à Previdência Social faz com que o sofrimento seja ainda mais acentuado. “Estou padecendo duas vezes. Junto às autoridades e aos bandidos. Somos cobrados dos nossos deveres, mas não nos garantem nossos direitos. Esperei que houvesse justiça, mas ela não bateu à minha porta. Só a violência. E essa veio da forma mais cruel possível.”

Condenados ficarão pelo menos 14 anos na cadeia, diz especialista

Os criminosos condenados pela morte da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza terão de cumprir pelo menos 14 anos e 4 meses de prisão para ter direito à progressão ao regime semiaberto. A interpretação da pena é do advogado Roberto Ferreira Archanjo da Silva, professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito de São Bernardo e doutor em Direito Processual Penal.

“Crimes hediondos, como o latrocínio, recebem tratamento diferenciado em relação aos demais. Em crimes comuns, é possível a progressão para o semiaberto depois do cumprimento de um sexto da pena. No caso de crimes hediondos, só é possível depois de dois quintos se o réu for primário e três quintos se reincidente”, explica. O fato de o preso migrar para o semiaberto não quer dizer, necessariamente, que ele vá para a rua. “O interno vai para uma colônia agrícola ou industrial e trabalha lá mesmo. Só sai para trabalhar se tiver emprego fixo, com comprovação à Justiça.”

Já a liberdade condicional pode ser concedida depois do cumprimento de dois terços da pena, o que, no caso dos condenados por esse crime, só acontecerá depois de 24 anos. “O preso sai da cadeia mediante condições, como não cometer outros delitos, não se ausentar da área de moradia e só viajar se tiver autorização. Se desobedecer, terá de cumprir na prisão o tempo que ficou solto.”

Vizinhos criticam falta de segurança no bairro

Pouco mais de um ano do crime brutal contra a dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, a falta de segurança ainda é apontada por moradores do Jardim Hollywood como um dos principais problemas do bairro. A vizinhança relata que são comuns casos de roubos contra pedestres e invasões a residências.

“Na época que aconteceu com a Cinthya, era muito comum ver viaturas da GCM (Guarda Civil Municipal) e da PM (Polícia Militar) passando por aqui. Hoje, não se vê mais nada”, critica a tradutora Silvana Oliveira, 21 anos. Ela afirma que, na Rua Copacabana, as ocorrências de roubo a casas tiveram pequena queda há cerca de um mês, quando foram iniciadas obras de drenagem na via. “Mas, nas praças, é frequente a presença de usuários de drogas”.

O aposentado Samir Caran, 73, relata que, recentemente, a casa de sua filha também foi invadida por bandidos. “Levaram tudo. Ainda bem que não tinha ninguém em casa.”

Para fugir da violência, o também aposentado Wladimir Rodrigues, 70, já pensou em se mudar. “Vira e mexe tem problema aqui. Tenho medo de sair, mas não posso deixar de fazer minhas coisas.”

A PM informa que o patrulhamento no bairro segue os parâmetros do PPI (Plano de Policiamento Inteligente), cujo planejamento é feito com base nos índices criminais mensais. A corporação garante que não houve nos últimos meses aumentos significativos nos principais indicadores criminais. A área é monitorada diariamente por seis viaturas da 2º Companhia do 6º Batalhão. A polícia afirma ainda que não recebeu reclamações por parte de moradores da região.

Já a Prefeitura de São Bernardo, responsável pela GCM, garante que “são realizadas rondas no Jardim Hollywood em virtude dos próprios municipais existentes na região diuturnamente.” A administração municipal ressalta que “é do governo do Estado a responsabilidade pela segurança pública na cidade.”  




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