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O que eu estou fazendo aqui?
Por Nilton Valentim
01/01/2020 | 07:00
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Quando estreei no jornalismo diário, lá no distante ano de 1995, fui direcionado para a cobertura de esportes. Naquela época, as coisas funcionavam assim: quem não tinha experiência aprendia a trabalhar no esportes ou cobrindo buraco de rua. Acho que tive sorte...

O esporte me proporcionou conhecer ídolos, contar histórias (algumas felizes e outras nem tanto...), narrar casos de superação, descobrir como cada um reage à vitória e à derrota. Me deu também o privilégio de participar de eventos que sempre sonhei e de conhecer em boa parte de Brasil.

Me fez também desenvolver uma contagem mental do tempo diferente dos demais mortais, que eu chamo de calendário esportivo. Funciona assim: a Copa São Paulo marca o início do ano. O fim da temporada de Fórmula 1 diz que está chegando o período de festas. O término do Brasileirão é quase Natal e depois vem a São Silvestre, quando o noticiário é invadido por uma série de reportagens sobre pessoas comuns que mudaram de vida após começarem a correr. Histórias que dividem espaço com as entrevistas dos favoritos, sempre com um brasileiro eleito para deter o favoritismo dos africanos nas ruas de São Paulo.

Durante muito tempo tentei entender o que levava aquela multidão de anônimos a ir para as ruas no último dia do ano encarar 15 quilômetros de sofrência. Será que essas pessoas não teriam coisa melhor para fazer? Não têm família? Namorado (a)? Esposa? Marido? Filhos?

Participei da cobertura de muitas corridas de rua. Da São Silvestre à Prova de Reis de São Caetano. Estive na primeira edição da Meia Maratona de Santo André, que na época tinha o Shopping ABC como patrocinador master, com largada e chegada na Avenida Pereira Barreto, entre outras. Mas sempre com um certo pé atrás em relação àquelas pessoas que se lançavam rua afora. Muitas delas, quando finalmente completavam o percurso, os primeiros colocados já tinham sido premiados e estavam a caminho de casa. Com tal performance, poderiam elas ser chamadas de atletas?

Eis que em 2013 o Diário entrou nessa onda e resolveu promover o 1º Circuito Popular de Corrida de Rua. E entre a equipe de organização estava esse que vos escreve. Dos bastidores para o asfalto foi um pulo, ou melhor, um sobressalto. Inicialmente foram as caminhadas, seguidas pelas corridas de cinco quilômetros e, por fim, o desafio cumprido de correr os dez quilômetros.

A primeira vez que atravessei a barreira dos dez quilômetros, em uma prova no Shopping Villa Lobos, na Capital, percorri o último quilômetro emocionado, imaginando como seria a chegada, a festa dos amigos que me esperavam. Decepção total, conforme me aproximava da meta, percebi que os organizadores já estavam desmontando a estrutura da corrida. Fazer o quê?

Vieram outras, muitas outras.

Junto com o prazer de correr chegaram as dores, gastos com tênis, inscrições... Na direção contrária, se foram alguns quilos indesejáveis, um monte de remédios cuja ingestão já fazia parte da rotina diária e uma grande dose de mau humor que insistia em se mostrar.

A São Silvestre, que antes era motivo de asco, começou a se transformar em objetivo. Até que em 2017 tomei coragem e me inscrevi. Em meio ao plantão de fim de ano, lá estava eu, mais um na multidão. Ansioso e amedrontado no início. Cansado e feliz no final. Gostei tanto que voltei no ano seguinte.

Ontem, pela terceira vez seguida, larguei, corri e cheguei. Durante os 15 quilômetros, por mais que uma vez passou pela cabeça deste humilde jornalista a pergunta ‘o que estou fazendo aqui?’. Sol de rachar na nuca, asfalto quente, inúmeros esbarrões, gente que do nada parava na frente para fazer uma postagem e até mesmo para atender ao celular, que desviava do trajeto sem aviso apenas para tentar aparecer na câmera da Globo ou para fazer pose para os fotógrafos. Uma festa.

O que estou fazendo aqui? A pergunta insistia em vir à mente e a cada vez surgia uma resposta diferente. Porque a corrida me dá prazer. Porque tenho um objetivo de terminar bem e feliz. Porque hoje, aos 50, me sinto melhor que aos 40 anos, quando insistiram em me dizer que a vida começava. Mentira!

O que estou fazendo aqui? Alguns quilômetros à frente o questionamento voltava e as respostas interiores também se sucediam. Estou aqui porque tomei gosto pela coisa. Estou aqui para agradecer pelas dificuldades que a vida impôs ao longo do ano, mas que foram superadas.

O que estou fazendo aqui? Estou aqui porque fui picado pelo ‘bichinho da corrida’, aquele que te faz comemorar pequenos ganhos. Porque é saboroso demais chegar com um tempo menor que no ano anterior.

O que eu estou fazendo aqui? Estou correndo para vencer os dois quilômetros de subida da Brigadeiro, porque sei que neste ano minha família estará lá para vibrar com a minha chegada, independentemente da posição.

O que eu estou fazendo aqui? Estou aqui contente e esperançoso, para receber as energias positivas das pessoas que se espalham pelas calçadas e que dão incentivo ao primeiro e ao último colocado.

O que eu estou fazendo aqui? Estou pensando que voltarei no último dia de 2020. 




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