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‘A música me deu a chance de ver a vida com esperança’
Por Marcela Munhoz
Do Diário do Grande ABC
15/07/2019 | 07:36
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O destino de um garotinho curioso de Santo André mudou depois que ele insistiu em conhecer a orquestra da igreja que um amigo frequentava. A música chamou Fernando Mathias quando ele tinha só 11 anos. Hoje, aos 29, o maestro da Orquestra Filarmônica de São Bernardo trouxe para si a responsabilidade de transformar a vida de outras pessoas com a música clássica. O vídeo em que rege concerto em homenagem ao seriado Chaves repercutiu na internet. “A trilha sonora é 50% da produção, é o que move o ator na cena. As músicas do Chaves têm poder especial de fazer as pessoas lembrarem de algo bom. Fiquei feliz em ajudar nisso.” 

Como foi o início da sua vida musical? Por que escolheu a música erudita?
Comecei dos 11 para os 12 anos por causa de uma curiosidade em descobrir o motivo de os meus amigos e vizinhos da rua irem para casa mais cedo durante alguns dias da semana. Eles voltavam arrumadinhos e com uma maleta nas mãos. Era um segredo. Um dia, um deles revelou que tinha uma flauta transversal e que tocava na igreja Batista, de Santo André. Fiquei com vontade de tocar, porque sempre gostei de música, apesar de não ter nenhum músico na minha família. Pedi para o meu amigo me levar junto, foi em uma segunda-feira à noite, nunca me esqueço. Eu me apresentei para o maestro Jó Gomes e ele disse que eu começaria naquele mesmo dia, com teoria musical. Cheguei em casa empolgado, avisei a minha mãe que tocaria violino. Minha mãe não sabia o que fazer, porque não tínhamos dinheiro nem para pagar as contas básicas de casa, o que dirá para comprar um instrumento. Mesmo assim, ela me deu um violino. Me esforcei, aprendi. Mais tarde a igreja me comprou uma trompa. Consegui uma bolsa de estudos na Fundação das Artes, em São Caetano, e aí minha vida profissional realmente começou. Aos 14, 15 anos, já ganhava alguns trocados com música e tocava na banda jovem de São Bernardo.

Como foi a sua formação?
Tive um primeiro aprendizado quase que autodidata dentro da igreja, o que me deu bagagem suficiente para conseguir bolsa de estudos na Fundação, em 2005, uma das melhores escolas de música. Aos 17 anos fui para a Escola Livre de Música, a ELM, que hoje é a escola de música de São Paulo, que fica na Luz. Durante o tempo em que fiquei por lá toquei nos grupos jovens, que são os principais do Estado, como a Banda Sinfônica Jovem e a Tom Jobim. Em 2012, fui inserido no curso de licenciatura em música na Universidade Cantareira. Estudei por um ano e meio, mas infelizmente tive que trancar. Então, migrei para o curso de bacharel em regência orquestral, em 2017, e pretendo terminar. Ainda não tenho superior completo, mas estou prestes a finalizar. Fora os cursos, fui finalista de dois concursos de regência, venci concurso de jovens solistas em São Caetano, e já participei de inúmeros masterclass com músicos e maestros nacionais e internacionais, como os de Berlim, Royal e assim por diante.

Como foi o momento em que decidiu ser maestro?
Aos 13 anos recebi uma oportunidade na Igreja Batista do Calvário – vou sempre citar porque sou muito grato por tudo o que eles fizeram por mim. Eu gosto de imitações, sempre me identifiquei com o lado cômico, então ficava imitando os maestros que via na televisão, como o Flavio Florence (1957-2008), que regia a Orquestra de Santo André. Meu maestro percebeu que tinha ritmo na hora em que gesticulava de brincadeira, com as mãos e braços. Então, em 2003, fui surpreendido quando ele me chamou no ensaio da orquestra, que tinha quase 100 músicos, e disse que eu ia reger durante um casamento. Ele me ensinou o básico e, na hora em que comecei a reger, vi que os músicos me acompanhavam, aquilo mexeu demais comigo. Desde então, eu nunca parei de reger. Desde 2016, estou na orquestra profissional de São Bernardo.

Como pode descrever o trabalho de reger uma orquestra? Como se sente com as batutas nas mãos?
Reger é quase natural para mim e também sempre atuei com liderança. Desde criança me via à frente da organização das brincadeiras na rua, por exemplo. É uma característica intrínseca a mim. A sensação de reger é muito prazerosa, é como se eu pudesse escutar música na frente de um rádio muito potente, que executasse todas as frequências da forma mais natural possível. Só que quando estou à frente desse rádio, tenho a possibilidade de fazer a canção se parecer com o que desejo. Faço as partituras, as marcações e penso que cada trecho pode ter diversas formas, então peço para os músicos tocarem como planejei. É como se eu pudesse comandar a música que eu escuto no rádio. É muito legal. Quando estou com as batutas em mãos me sinto único porque tenho condições de oferecer ao público interpretação que saiu da minha cabeça. É lógico que me baseio em série de regras, mas a música que toca na minha cabeça se torna viva e posso ver se o público gosta ou não. Quando os aplausos acontecem de forma enfática, tenho a confirmação de que minha ideia foi aceita. É muito satisfatório. Entre as minhas peças favoritas, embora eu sempre diga que a que estou estudando no momento é a mais importante, estão a terceira, quinta e nona sinfonias de Beethoven (1770-1827), além da quinta sinfonia de Tchaikovsky (1840-1893).

Como vê a educação musical no Brasil e na região?
Infelizmente é algo muito defasado, triste. Vejo pela minha própria história. Se não fossem pessoas do bem, que queriam, de fato, fazer a diferença, não teria sido inserido nesse universo. Então vejo que aquela igreja, naquele momento, fez o papel que o governo deveria fazer, que a sociedade deveria sentir falta e cobrar, mas ninguém sente falta daquilo que não conhece, que nunca viu. Esse é o problema. Então a educação musical no País é pobre, as músicas estão vulgares, obsoletas e só são motivadas pelo lucro, enaltecimento pessoal e desvalorização do ser humano. Nós precisamos urgentemente de um incentivo para que as crianças abram o leque das escolhas musicais. Se elas não gostarem do clássico, ele vai acabar. Precisamos mostrar que também existe esse universo. Já contava o escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) que dizem que cachorro só gosta de osso, mas quando se coloca o osso ao lado de um filé mignon, ele vai escolher o filé. Enquanto as pessoas não conhecerem o outro lado da moeda, o algo a mais, só vão conseguir consumir o que está sendo mostrado para elas. No Grande ABC acontece algo um pouco diferente da realidade brasileira. Nós temos o projeto Locomotiva, que é extremamente valioso, que forma músicos muito bons. Projetos que, muitas vezes, não são valorizados. Na divisa com São Caetano fica a Orquestra de Heliópolis, do projeto Baccarelli, que também e fantástico e forma músicos com carreiras internacionais.

Como está o trabalho na Filarmônica de São Bernardo?
Estou lá desde 2016 e tem consumido meu tempo e me dado vários frutos. É um sonho de vida que tive há algum tempo, vendo a decadência das orquestras no Brasil, algumas deixando de existir e outras entrando em crises profundas. Isso me trouxe um senso de missão de resgate da minha profissão, da que almejo seguir até o fim da minha vida. Foi quando veio o desejo de criar uma orquestra e, para isso, é preciso escolher um lugar em potencial. Fui muito bem recebido em São Bernardo, pelo prefeito Orlando Morando, que cede os espaços públicos para ensaios e apresentações, assim podemos nos estabelecer de alguma forma. Existe o projeto de uma orquestra jovem na cidade, que ainda não aconteceu por falta de estrutura e recursos financeiros. Mas vamos continuar a lutar. A orquestra profissional precisa ser espelho para a jovem, então, em um ou dois anos a ideia é que o projeto saia do papel.

Seu concerto em homenagem ao Chaves (no Cenforpe, em dezembro de 2018) teve bastante repercussão. Por que acredita que as pessoas se emocionaram tanto?
De fato o vídeo teve projeção muito grande e confesso que uma das intenções era justamente essa. Conseguimos por meio do Fórum Chaves, um fã clube do seriado. Por causa disso, outros vídeos da filarmônica estão sendo vistos e compartilhados, o que acaba ajudando as pessoas a conhecerem um pouco mais do nosso trabalho. Acredito que o concerto tenha tocado o coração das pessoas, porque Chaves fez e faz parte da vida de muita gente, inclusive da minha. Até hoje dou risada. É um programa simples, singelo e ingênuo, sem apelo, por isso mexe com a gente. Chaves é verdadeiro. A trilha sonora ajuda os atores a encenarem, a ‘empurrar’ as lágrimas.

No Brasil, a música feita por orquestras ainda é para poucos interessados. Como aproximar o público leigo?
É pouco divulgada, apesar de que com o avanço da internet e acessibilidade, muitas já têm, pelo menos, o acesso a ela. As pessoas não vão atrás por falta de conhecimento, afinidade. Um dos focos da Orquestra Filarmônica de São Bernardo é justamente aproximar as pessoas à música de concerto. Como fazemos isso? Tocando o que elas gostam, o que estão mais habituadas a escutar, aquilo que mexe com os sentimentos delas. Se os músicos se unirem no intuito de apresentar o que é mais conhecido e, aos poucos, mostrar o desconhecido, certamente o público vão conseguir ampliar o leque cultural.

Você acredita que a música pode transformar vidas?
Sim, porque a música transformou a minha. Hoje vejo o que me trouxe, a começar pela possibilidade de sorrir. Acredito que foi uma ferramenta usada por Deus para que eu pudesse enxergar a vida com esperança, com um colorido no olhar, e deixasse de lado as dificuldades e problemas. A música me trouxe minha profissão, comprometimento. Se eu não fosse músico, realmente não sei dizer o que seria. Sempre digo que a música me encontrou. Quem aprende a verdadeiramente escutar música aguça a atenção, a audição e sensibilidade. Ajuda a expressar as emoções.

RAIO X

Nome: Fernando Mathias de Carvalho 

Estado civil: Casado

Idade: 29 anos

Local de nascimento e de moradia: Santo André, São Paulo 

Formação: Superior incompleto 

Hobby: Fazer música

Local Predileto: O palco

Livro que recomenda: Bíblia Sagrada – sem fanatismo e sem religiosidade, mas acho os ensinos atualíssimos

Profissão: Músico

Maestros que admira: Entre os brasileiros, estão Eleazar de Carvalho, Roberto Tibiriça, Wagner Polistchuk, Fabio Mecheti e Marcio Arakaki. Entre os internacionais, estão Daniel Barenboim, Gustavo Dudamel, Rian Carlo Guerreiro e Sir. Simon Rattle.

Onde trabalha: Teatro Abílio Pereira de Almeida e na Orquestra Filarmônica, ambos de São Bernardo




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