Setecidades Titulo Coluna
Noite indigesta
Por Rodolfo de Souza
05/12/2019 | 07:00
Compartilhar notícia


Era noite na comunidade, e o pancadão rolava solto. Estava boa a festa que avançava madrugada adentro, inaugurando mais um domingo que certamente viria com muita ressaca, logo curada pelo futebol e pelo churrasco na laje, remédios infalíveis nessas horas. Pois é assim que devem ser os finais de semana: com muita alegria no coração e energia para recarregar as baterias.

Claro que nem tudo é felicidade no meio da multidão que sacode, alucinada, as cadeiras no ritmo frenético do funk. Isso porque a comunidade é feita de gente que ganha a vida ralando, como é comum, aliás, a quase todo o brasileiro que aqui chegou um dia para viver na simplicidade e experimentar, desde cedo, o amargo sabor de uma existência de privações.

Entretanto, é preciso lembrar que o dia a dia de condução lotada, trabalho duro e alguma lágrima que rolam matreiras, é sempre compensado pelo baile de logo mais que causa ansiedade só de pensar. Já na sexta-feira bate aquele sentimento bom de ter finalmente chegado um dia como qualquer outro, mas do qual é possível vislumbrar o sabadão que será dedicado, todo ele, ao amor, à bebedeira, ao agito de todo tipo, à gargalhada descontraída e exagerada... E o funk é sem dúvida o embalo que lava a alma, disfarça o recalque diário e transforma a pessoa comum numa estrela que brilha forte, ainda que somente por uma noite. É festa que reúne muita gente que deixa de lado os rigores da vida para se entregar de corpo e alma ao relaxamento merecido, repleto de energia e de juventude.

Comunidade é isso, afinal: um complexo de moradias e comércio que vende de tudo. É um frenesi de pernas para lá e para cá o dia todo. Caminhar de um povo que batalha a vida e também se refestela dançando um ritmo visto com desdém pelas camadas qualquer coisa mais abastadas da sociedade. Além disso, ainda sofre com o preconceito por causa da cor morena de sua pele, boa parcela da gente de lá.

E é para ali que se dirige o olhar de rapina da lei que está sempre em busca de elemento que tem por ofício deitar a mão em objeto alheio, comercializar coisas proibidas, e coisa e tal. E foi justamente atrás desse tipo que se embrenharam no local do evento os guardas que davam plantão naquela noite que não seria igual às outras. Promoveram ali muita confusão que acabou em correria, empurra-empurra, agressão e morte. Parece que a lei seguia no encalço de dois meliantes que entraram no baile para escapar da perseguição. E, por causa disso, nove pessoas perderam a vida, massacradas pelo desespero nas vielas. Incursão desastrosa esta dos representantes da lei, que, no final das contas, nem prenderam os bandidos que vinham perseguindo.

E as autoridades, como é de costume, ficaram de apurar com rigor os fatos, indiferentes à dor das pessoas que sepultaram seus mortos. Aos poucos, os comentários cessaram e tudo caiu naquela normalidade entediante. Mas o baile, evento imprescindível dos finais de semana, não há de faltar por causa disso. Brilhará repleto da alegria de sempre. É assim que tudo funciona nesta pátria que, há muito, apeou do progresso e se perdeu na escuridão. 




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;