Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
‘Difícil aceitar o Lula recebendo benesse privada’
Por Raphael Rocha
Do Diário do Grande ABC
14/03/2018 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


O baiano de Miguel Calmon chegou em Diadema em 1960 para fazer história. Primeiro como um dos líderes do Sindicato dos Metalúrgicos no período das grandes greves dos anos 1970 e 1980. Depois, ao se eleger o primeiro prefeito do PT, em 1982. Viveu de perto o crescimento industrial da região. Também foi protagonista na ascensão do petismo, inicialmente no Grande ABC, depois no País. Esteve lado a lado com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na luta contra a ditadura militar. Quatro décadas depois e hoje morando na pequena cidade de Santa Cruz da Conceição, Gilson, 68, admite que muita coisa mudou. E nem tudo para melhor.

Gilson Menezes e o Diário
Gilson Menezes era ferramenteiro da Scania, em São Bernardo e militava no Sindicato dos Metalúrgicos. Há tempos amadurecia ideia de paralisar a fábrica. Para reclamar da situação precária de seus colegas e também para contestar o regime militar. Paralisação não era, na época, meio usual de manifestação. No dia 12 de maio de 1978, o plano de Gilson foi implementado. E o Diário teve papel importante. Noticiou aquela que seria a primeira greve em uma década. Com o passar dos anos, tornou-se o veículo de imprensa que mais acompanhou a geração que, de braços cruzados, ajudou a derrubar a ditadura.

Como começou sua atuação na política?
Liderei a primeira greve depois de dez anos no Brasil. Estávamos muito bem organizados, trabalhadores de braços cruzados e máquinas paradas. Eram 7h e ninguém ligou as máquinas. A fábrica inteira parou. Pegamos a empresa, a imprensa, todo mundo de surpresa. Foi na Scania, no dia 12 de maio de 1978. A partir da greve da Scania começou a pipocar greve no Brasil inteiro. Teve no Grande ABC e no Brasil todo. Queríamos questionar o sistema, a ditadura militar, questionamos a partir da greve da Scania e veio a anistia, por exemplo. Veio muita coisa. Tem de se dar o valor real à greve da Scania. O valor que dão é muito pequeno. A greve da Scania foi muito importante.

Como era a cobertura do Diário nessa fase do movimento sindical?
O Diário sempre teve cobertura boa. Divulgava totalmente as ações. Mas no Brasil não deram valor à greve da Scania. Na verdade, a partir da greve da Scania é que o Brasil começou a conquistar outros acontecimentos importantes, na política, nos meios sindicais.

Como surgiu a ideia de paralisar a produção da Scania como forma de protesto?
Havia movimento muito grande no Sindicato dos Metalúrgicos, de organização, de pensamento sindical. Cinco dias antes de organizar a greve eu falei para os trabalhadores: ‘Estou sentindo que é possível fazer uma greve na Scania’. Comecei a falar com os líderes de cada seção, os mais combativos, companheiros e comecei a organizar. No começo falavam que era muito arriscado, que a coisa não iria dar certo. Eu sempre achei que daria certo. Coloquei a confiança nos trabalhadores na possibilidade de fazer a greve. Quando paramos a chefia perguntou se eu não tinha medo de ser jogado de um avião no mar? ‘Quem está no fogo pode se queimar, fazer o quê’, eu respondi. Depois esse mesmo chefe falou que não gostava de mim, que eu era comunista, mas que eu era homem.

Houve mudança na atuação sindical nessas quatro décadas desde a greve da Scania?
As coisas mudaram muito, logicamente. Um operário chegou à Presidência da República. Isso é algo muito importante. É preciso continuar se organizando, o trabalhador tem de ter essa consciência, junto ao seu sindicato, para estar preparado aos golpes que são dados no País. A luta é outra. Tem de estar sempre preparado.

Crítica que se faz atualmente é que a direção dos sindicatos se afastou da base, ostentando bens materiais em alguns casos. O sr., que viveu a época romântica do sindicalismo brasileiro, concorda com essa crítica?
Sem dúvida nenhuma afasta. O comportamento de alguns líderes sindicais compromete o sindicato. No nosso sindicato o interesse era o da mudança, mudar o País, o sistema, o regime. E mostramos na prática isso. Se depois alguém aceitou as benesses de empresários, isso fica complicado. Estou numa situação financeira difícil, não passo fome, mas a situação é difícil porque sou perseguido por ter tido uma atuação digna à frente da Prefeitura de Diadema. Pode dizer que Gilson é cintura grossa, radical, bobo, isso ou aquilo. Mas ninguém pode dizer que o Gilson traiu a confiança do povo de Diadema. Jamais peguei uma caneta da Prefeitura para minha casa. Jamais. Não houve corrupção de nada. Até a sede do PSB, a melhor sede de um partido no Brasil, foi construída com dinheiro de militantes do PSB.

O sr. viu de perto todas as etapas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde seu surgimento no Sindicato dos Metalúrgicos, a fundação do PT e os mandatos presidenciais. Qual análise o sr. faz da trajetória dele?
O Lula teve um bom governo como presidente, fez muita coisa. Mas não deveria ter aceitado benesse nenhuma. Absolutamente nada. Tinha que agir como o (ex-)presidente do Uruguai José Mujica, que morava numa chácara, saiu do governo e ainda mora na mesma chácara. Na verdade eu acredito que o Lula não tenha o vício de pegar dinheiro. Não acredito nisso. Mas não pode aceitar benesse nenhuma de empresário. Não pode aceitar esse tipo de presente.

Surpreendeu o sr. quando as denúncias começaram a aparecer?
Surpreendeu muito, muito mesmo. Acho que ele fez bom governo, lutou muito na vida sindical, na defesa do trabalhador, ajudou muito na organização dos trabalhadores, mas não poderia ter aceitado benesse nenhuma. É um absurdo.

Como é ver alguém que lutou com o sr. nas mais famosas greves do Grande ABC hoje estar condenado por corrupção?
É muito difícil aceitar esse tipo de coisa. Eu não aceito. Quero dizer que o Lula foi importante para o povo brasileiro, fez muita coisa no governo, foi um presidente municipalista. Nunca os municípios receberam tanto quanto no governo Lula. Mas, infelizmente, tivemos essa situação. Acho que merece perdão. Tem de se dar nova oportunidade a ele.

O sr. votaria no Lula na campanha presidencial deste ano caso ele pudesse concorrer?
Olha, quem sabe? Quem sabe eu até votaria.

Nesse contexto de mudanças éticas se encontra o PT. O partido foi fundado, com sua ajuda, calcado no discurso de ética, moralidade e defesa do trabalhador. E hoje está ao lado de outras legendas sendo investigado por fraudes com o dinheiro público. Como o sr. vê essa passagem?
Machuca. Pegar dinheiro, aceitar dinheiro. E olha que não era para campanha. Se fosse para campanha, eu até admitiria. Não é que aceitaria, mas admitiria. Mas muitos pegaram dinheiro para encher o bolso.

É possível resgatar a imagem do PT?
Acho que sim. Tem de cortar na própria carne e fazer autocrítica clara.

Como foi ser o primeiro prefeito da história do PT?
Tomei posse no clube Okinawa (na região central) e a frente do Okinawa não era asfaltada. Eu saí da Prefeitura para lá e me sujei todo de barro. Naquele dia choveu muito e caíram várias pontes entre Diadema e São Bernardo, em São Paulo. Umas caíram parcialmente, outras totalmente. Quase ficamos ilhados. Tivemos que começar a trabalhar muito no dia seguinte. Eu não fiz uma administração. Eu fiz uma revolução administrativa. A cidade não tinha guia, sarjeta, asfalto, escolas, postos de Saúde. Tudo começou com nosso governo. E mudamos a cidade. Mudamos totalmente a cidade. Diadema é uma antes e outra depois do Gilson Menezes. Mas no fim (da primeira passagem) o PT adotou um tipo de comportamento que me machucou muito. Foi algo vergonhoso (brigado com José de Filippi Júnior e José Augusto da Silva Ramos, que viriam a sucedê-lo no cargo de prefeito de Diadema, Gilson deixou o PT).

Como o sr. vê Diadema hoje?
Infelizmente o que falta é visão mais aberta. O povo tem de participar, tem de ter administração transparente, participativa. É isso que precisa. Precisa de dinheiro? Claro. Mas pode ser feita gestão transparente, participativa. No meu governo tinha debate, era totalmente aberto. No conselho popular a gente discutia de igual para igual. Tinha briga. As reuniões eram às terças-feiras. Qualquer pessoa poderia ir para a Prefeitura e participar da reunião. Podia fazer crítica, sugestão. O pessoal falava para mim que eu não precisava disso, que fazia governo bom, que não precisava passar por momento de críticas daquele. ‘Está na minha praia’, eu respondia. O povo tem de falar, de criticar. No Brasil o povo não podia falar, mas em Diadema podia. O povo de Diadema era considerado a população mais crítica e contestadora porque começou com a nossa administração. Era ambiente de politização, sem dúvida.

Como foi a relação do primeiro prefeito do PT na história com o Diário?
Era cobertura muito boa. Logicamente a gente não concorda com tudo que era publicado. Mas de maneira geral foi boa. Tomei muito café com a diretoria do Diário. Era convidado a tomar café constantemente. Logicamente houve alguma ou outra crise. Mas isso é normal, natural do jogo. Era um debate de bom nível. Uma vez me chamaram para tomar café e me deram parabéns pela limpeza em Diadema. A cidade estava pintadinha, limpa. A diretoria do Diário falou isso para mim. Falaram que Diadema era a cidade mais limpa da região.

O sr. emergiu politicamente das lutas sindicais numa época em que uma infinidade de empresa dominava o Grande ABC. Passadas quase quatro décadas o perfil econômico da região vem mudando, como o próprio Diário mostrou em reportagens recentes. É possível reverter essa tendência da desindustrialização?
Na verdade, o que se quer é ganhar mais dinheiro. Empresas querem se automatizar para ganhar mais. É um câncer do capitalismo. Trabalhadores têm de se unir para mudar esse pensamento. O pensamento tem de ser social. Que a empresa ganhe, mas o trabalhador e a comunidade ganhem também. Esse deveria ser o debate. O dinheiro deveria ser social. Um outro olhar.

Como o sr. vê o futuro do Brasil?
Há jeito, sim. Ainda há. Perdemos uma boa oportunidade com o PT, o partido poderia ter tido um comportamento diferente no Brasil todo. Onde assumiu as prefeituras poderia ter tido comportamento digno, claro. Poderíamos ter avançado muito. Não só o PT, mas os partidos com linhas próximas ao PT. Deveria ter tido comportamento melhor para mudanças locais, em todo o Brasil. Seríamos um Brasil melhor rapidamente.

O que precisa ser feito para melhorar o País?
A nova geração tem de assumir partidos, governos, assumir as mudanças que precisamos no País. A nova geração pode dar jeito nisso. Mas é difícil. Porque a nova geração não está politizada. Não tem visão transformadora. Infelizmente. Pode demorar muito.

E o futuro do Grande ABC? Como o sr. enxerga nossa região nos próximos anos?
Vai continuar forte, economicamente sim. Politicamente sofreu um desgaste grande. Mas economicamente vai continuar forte.

Legado que o sr. acredita ter deixado ao Grande ABC?
Se as pessoas tomarem informação ou lembrarem do que fiz, tanto como sindicalista como prefeito, fica o legado de responsabilidade e honestidade. Graças a Deus eu posso andar na cidade de rosto para cima, de olhar para cima, sem medo de receber provocações. Claro que pode ter gente que não gosta de mim. Mas a extensa maioria gosta. No feriado de Natal eu estava tomando antibiótico e as farmácias não queriam aplicar o remédio via injeção em mim. Tive que ir ao Quarteirão da Saúde tomar a injeção. Fui quietinho, para ninguém me ver, não queria chamar atenção. Mas não adiantou nada. Os enfermeiros, os demais trabalhadores do Quarteirão, as pessoas que eram atendidas, todas vieram até mim para agradecer pelo que fiz para Diadema. Eu saí de lá chorando. Pessoal querendo tirar foto com o celular. Recebi muito carinho. É isso que eu levo. Prefiro estar sofrendo, mas estar de cabeça erguida. Não com ameaça de ser preso por corrupção. 




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