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'Abraços Partidos' é sobre olhar e ser olhado
04/12/2009 | 07:00
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Nos últimos anos, Pedro Almodóvar tem levado ao Festival de Cannes grandes filmes - "Tudo Sobre Minha Mãe", "Volver", "Abraços Partidos". Ele chega sempre como favorito, alguns júris lhe outorgam bons prêmios de consolação - direção, roteiro, interpretação. Neste ano, com Abraços Partidos, que estreia hoje (em apenas uma sala da região, ABC Plaza 6), não houve nenhuma consolação para Pedro - o júri presidido por Isabelle Huppert o ignorou, por completo. Ele intuía que isso poderia ocorrer, na entrevista concedida a um pequeno grupo de jornalistas, numa tarde particularmente atribulada de maio, na Croisette. Almodóvar estava mesmo cansado da condição de favorito.

Você é o primeiro a afirmar que seus filmes têm gêneses curiosas. Como foi a de Abraços Partidos?

ALMODÓVAR - Mais curiosa que de hábito. Faz um tempo que visitei a ilha de Lanzarote e tirei algumas fotos daquela praia, que é tão bela. Lembrava-me da praia deserta, pois era fora de estação, mas ao revelar as fotos, como o protagonista de Blow Up - Depois Daquele Beijo (de Antonioni), fiz uma descoberta. Havia um casal abraçado. Como não os havia percebido? Ocorreu que há dois anos fiquei doente e tive de passar um período na obscuridade. Comecei a pensar nessa história sobre um diretor cego, em consequência de um acidente, e incorporei a imagem do casal na praia, que tanto permanecia comigo.

Seus filmes tratam de duplos e misturam gêneros. Você concorda que este parece um melodrama à Douglas Sirk impregnado de cinema noir?

ALMODÓVAR - O duplo realmente me atrai como representação da realidade, até porque um personagem é um personagem, sobre o qual cada um de nós projeta suas ansiedades e referências. Eu penso uma coisa, você pode projetar outra. O filme tem a cena em que o maquiador diz a Penélope (Cruz) que se parece com Audrey Hepburn, mas ela também usa uma peruca loira, que pode se assemelhar a Marilyn Monroe. O melodrama e o humor sempre me acompanham. Fazem parte da minha cultura, do meu imaginário. E existem elementos noir, bem fortes até, mas hesito em proclamá-los porque isso pode alimentar expectativas. Vão dizer que eu revoluciono o noir, e talvez não seja bem o caso.

O protagonista do filme é um cineasta que perde a mulher e a visão - e vira escritor, trocando de nome. A estrela era uma garota de programa por quem um milionário se apaixona. E existe o diretor que retoma um velho projeto que a morte da estrela deixou interrompido... Ou seja, desta vez você radicalizou, não?

ALMODÓVAR - Tenho um amigo que se diverte muito analisando meus roteiros. Diz que são tão complicados que só eu conseguiria realizá-los. Não creio que isso seja totalmente verdade, mas estou certo de que eles dependem de um tom, que só eu posso imprimir. Cada projeto meu consome, em média, dois anos. É muito tempo para conviver com personagens e situações. Eles vão virando fantasmas que passam a me assombrar. Adoro escrever roteiros, filmar. Faço isso com liberdade e descontração. O lançamento, em contrapartida, é sempre tenso. E tenho de ficar dando entrevistas. Muita gente se surpreende quando digo, mas fazer filmes é negócio difícil. A pressão é brutal. Nos festivais, sinto-me como fera enjaulada. Gosto ainda menos de participar de júris. A única competição que me mobiliza é a das salas, quando o público se manifesta.

Seus filmes fazem sucesso em todo o mundo. Isso é liberador?

ALMODÓVAR - Em termos. Libera e me permite fazer os filmes que quero sem muitos contratempos, mas, ao mesmo tempo, há uma cobrança cada vez maior por resultado.

Abraços Partidos é, entre outras coisas, sobre o cinema?

ALMODÓVAR - Acho que é. Sobre olhar e ser olhado, sobre a intimidade devassada por câmeras. No filme dentro do filme, ao descobrir que Penélope está tendo um caso com seu diretor, o milionário com quem ela vive contrata uma equipe para segui-la e filmá-la, em busca de evidências. E ele contrata uma leitora de lábios para saber o que Penélope diz ao amante.

Na grande cena, ela própria faz a leitura - a dublagem é uma evocação de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos?

ALMODÓVAR - Sim, claro, mas também é, principalmente, um filme sobre linguagem. Falo no sentido específico da palavra. Em meus filmes, sobretudo nos primeiros, a paixão era vivida como puro instinto. Tudo o que eu queria era transgredir. Com a idade, fui ficando mais reflexivo. Fale com Ela não tem aquele título por acaso. O falar hoje em dia é muito importante para mim. Falar, refletir. Nenhum outro filme meu tem tantas revelações quanto as do desfecho de Abraços Partidos. Mas, por favor, não tirem o prazer do público. Não revelem nada.

Você oferece outro grande papel a Penélope Cruz. Ela declarou que o entendimento entre vocês é total. O que me diz dessa sintonia profissional entre vocês?

ALMODÓVAR - Conheço Penélope desde que ela tinha 17 anos. Vi-a crescer, como mulher e atriz. Penélope é iluminada. O que eu fiz, para servir à personagem, foi colocar um pouco de sombra nessa luz toda. Acho que isso pode servir de metáfora para o próprio filme. Mas a verdade é que Penélope ainda me surpreende. Ela está sempre pronta a atuar em todos os registros, a se testar, a ir aos limites. Meu cinema deve muito aos atores.




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