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Gorgonzola e roquefort, manos de bolor
Por Sílvio Lancellotti
Especial para o Diário
22/04/2007 | 07:02
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Diz um antigo provérbio gastronômico que não se realiza um queijo de gorgonzola, originário da Itália, ou um queijo de Roquefort, o seu irmão da França, com a essência das pétalas das rosas. De fato, trata-se de produtos de aromas peculiares, que incomodam os narizes sensíveis, e de aspecto visual no mínimo intrigante. Não existe um gorgonzola, muito menos um roquefort, igual ao seu vizinho. Para que assumam a sua textura, e o seu sabor, sem par na história dos alimentos, propositadamente recebem o ataque de um bolor.

Vaca e ovelha - Faz-se o gorgonzola com leite de vaca. Faz-se o roquefort com leite de ovelha. Essa, porém, é a diferença basilar que os separa. O mofo provém de uma mesma família, de um fungo batizado de Penicilium glaucum, no caso do queijo peninsular, e do Penicilium glaucum roqueforti, no caso do transalpino. E os procedimentos que transformam o mero leite coalhado em uma iguaria superior são extremamente parecidos, desde que as maravilhas surgiram, claro que por acidente, nas duas nações, em épocas próximas, dois milênios atrás.

Em Gorgonzola, na imediações de Milão, Lombardia, norte da Itália, há uma sucessão de grotas portentosas, de temperaturas internas ao redor dos 20°C e de umidade constante, circunstâncias que favorecem a proliferação do fungo. Em Roquefort-sur-Soulzon, nos Pirineus, sul da França, quase fronteira com a Espanha, também se destaca uma coleção de cavernas, as de Cambalou, com equivalentes características. Por uma coincidência ainda mais sensacional, são idênticas as lendas que remontam ao surgimento das delícias: um pastor, que se nutria de pão com a nata de leite, esqueceu um pedaço do seu lanche em Gorgonzola e/ou em Cambalou. Dias após, ao retornar à sua proteção de pedra para um descanso e uma comidinha, constatou que a nata havia se esverdeado. O odor esquisito não o assustou. Pelo contrário, o estimulou a experimentar o instigante resultado. Gostou. Aliás, adorou. E decidiu repetir toda a operação.

Hoje, evidentemente industrializados, os procedimentos obedecem a um rigorosíssimo controle de qualidade. Um, se perpetra a pasta fundamental de cada queijo – no gorgonzola, um teor de gorduras ao redor de 29%; no tipo mais macio e mais cremoso, o dolcelatte, ao redor de 40%; no roquefort, ao redor de 45%.

Daí, em formas que permitam a passagem do ar, montam-se os moldes – no gorgonzola, de 25cm a 30cm de diâmetro, 10cm a 15cm de altura, de 6kg a 12kg de peso; no roquefort, de 18cm a 20cm de diâmetro, 9cm a 12cm de altura, 500g a 2kg de peso.

Então, para que maturem, e assimilem a saudabilíssima e providencial invasão do bolor, se perfuram os moldes com longas agulhas de aço inoxidável, de bronze ou de cobre, meticulosamente esterilizadas. Pelos caminhos que as hastes metálicas configuram, entrará o santo mofo. No caso do gorgonzola e do roquefort legítimos, nos seus subterrâneos respectivos.<TB>É, as grotas e as cavernas das plagas em que até agora reinam, geniais.

Laboratório - Mas o homem descobriu um universo de maneiras de utilizar a natureza, ou de enganá-la, a seu favor – tanto que proliferaram, no globo, o queijo do tipo gorgonzola e o queijo do tipo roquefort, com fungo de laboratório. Nada contra, embora eu considere avassaladora a superioridade dos legítimos, na Itália e da França.

Por uma questão de economia, se necessitar, mergulhe nos sucedâneos brasileiros, todos de qualidade bem respeitável. Com qualquer das amostras nativas você conseguirá cometer uma bela Quattro Formaggi, de infinitos aproveitamentos, ou as duas receitas que aqui proponho: além de um risotinho rápido, emergencial, uma macarronada que honra um meu amigão.

Receitas

Risottino quattro formaggi
Ingredientes, para uma pessoa: 1 colher de sopa rasa de manteiga sem sal. 1 colher de sopa rasa de cebola branca trituradinha. 1 xícara de chá de arroz branco já cozido bem no ponto al dente. A pasta de queijos que ensino abaixo. 1 colher de sopa de vinho branco bem seco. Noz moscada. Para enfeitar, um triangulozinho de parmesão e um ramo de tomilho fresco.
Modo de fazer: Numa frigideira, derreto a manteiga e murcho, apenas murcho, a cebola, sem permitir que principie a se dourar. Agrego o arroz e a pasta de queijos. Misturo e remisturo. Coloco o vinho. Viro e reviro, para que o conjunto assuma a mesma temperatura. Caso o risottino se mostre sólido em demasia (precisa dançar, como uma onda, na frigideira), despejo mais um tico do vinho. Tempero com a noz moscada, a gosto, e sirvo como na imagem.
Observação: Este risottino funciona como uma entrada quente, antes de um prato de peixe, de frango ou de carne. Mas, também fulgura como escolta para grelhados em geral. Brinque com a sua fantasia e com a sua imaginação.

Penne alla Michelangelo
Ingredientes, para uma pessoa: 2 colheres de sopa de bom azeite de olivas, puro, extra-virgem. 4 tomates pelados, escorridos do conteúdo da lata, grosseiramente picados. 2 colheres de sopa de queijo do tipo gorgonzola ou roquefort, importado ou caboclo, use a marca ao seu alcance. 1 colher de sopa de alcaparras, previamente lavadas. 150g de penne, rajadas, de "grano duro", cozidas um tico antes do ponto al dente. Parmesão ralado, em fios.
Modo de fazer: Numa frigideira, aqueço o azeite puro, extra-virgem, sem permitir que comece a pipocar. Lanço os tomates. Amolengo os tomates, aqui e ali esmagados com um garfo longo de madeira, ou o seu equivalente. No momento em que o molho se encorpa, agrego o gorgonzola, ou seu mano roquefort. Desmancho o queijo, sem deixar que o conjunto pegue no fundo da panela. Viro e reviro. Lanço as alcaparras e as penne – e termino o seu justo cozimento no molho. No prato que vai à mesa, coloco o parmesão a gosto.
Observação: Aprendi esta relíquia com Coca Tussato, o salvador da marca Babbo Giovanni de pizzarias. E se encontra a beleza, também, nas casas da rede Ostería do Piero, do meu saudoso fratellone Sergio Grandi.

Saiba mais

A pasta de quatro queijos
Sobram nos restaurantes deste país as alquimias que sugerem alguma espécie de matrimônio entre quatro queijos. De todo modo, eu permaneço com a formulação que desenvolvi, ainda no comecinho da década de 70, para um logradouro em São Paulo, pioneiro no seu aproveitamento. Omito a sua justa identificação, pois o ponto não mais existe e o seu dono já subiu ao paraíso.

Em uma colherada de manteiga, sem sal, mais outra de azeite de olivas, eu derreto uma de mozzarella ralada, uma de provolone idem, uma de gruyère idem e uma de gorgonzola idem. Não permito que a pasta pegue no fundo. De modo a transformá-la num creme, agrego leite integral, aos poucos, o quanto bastar. Para uma pessoa, esta formulação pode ser preservada num freezer.

Os nobres primos pobres
À parte os sucedâneos que se oferecem no Brasil, muitas importadoras e os bons supermercados dispõem de primos mais pobres, de ótima categoria, dos legítimos gorgonzola e roquefort. Proponho duas opções gloriosas.

O Danablue da Dinamarca, mais encorpado, mais firme e um tanto mais picante do que os seus congêneres da Itália e da França, com os veios quase azulados no interior, obtidos pela incisão do P. roqueforti. De leite de vaca, idealmente deve ser amaciado através da sua mistura com manteiga sem sal.

O Stilton, da Grã-Bretanha, oficialmente datado de 1730, prensado, bem mais denso e muito mais rijo, a ponto de permitir o corte de uma fatia, inteira. De vaca, seus veios obtidos graças à agressão controlada do P. glaucum.



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