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Andreense aproveita pandemia para criar instrumentos musicais com reciclados

Com a crise sanitária, ele passou por crises fortes de ansiedade e depressão

Vinícius Castelli
Do Diário do Grande ABC
04/10/2020 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


Tronco de coqueiro, frigideira velha, fios de cabo de fibra ótica, lata de alumínio de cerveja. Não importa o que seja. Tudo se transforma nas mãos de Canísio José Klein, 65 anos, morador de Santo André. Nascido no Rio Grande do Sul, na cidade de Santo Cristo (a 516 quilômetros da capital Porto Alegre), o professor de história e filosofia dá vida nova a sucata e outros materiais que estavam sem utilização, muitas vezes até jogados na rua. Em suas mãos, o que era lixo vira instrumento musical.

Na infância, Klein participava de corais. Nos anos 1980, começou a arranhar algo no violão. Porém, tocar nunca foi seu forte. Nem por isso fez a música acessório em sua vida. Ele se recorda quando viu uma roda de capoeira pela primeira vez, com toda sua sonoridade, na Praça da Sé, coração de São Paulo, nos anos 1970. “Algo vibrava em mim, perdi até a hora”, conta. Já que não podia tocar os instrumentos, canalizou sua paixão pela música em confeccionar o material. A ‘mágica’ toda acontece artesanalmente, em sua casa, no Parque Jaçatuba. A ideia de transformar material inutilizado em algo útil – e sonoro – surgiu durante a pandemia. “O que posso oferecer, quando (a vida) retornar à normalidade? Não quero retornar de mãos abanando”, pensou o artesão.

Klein, no começo do ano, integrava turma de percussão da ELT (Escola Livre de Teatro) de Santo André e sentiu que poderia colaborar produzindo instrumentos para o grupo. “Sabia fazer artesanato, trabalho também com ecopedagogia, com reúso de materiais, e vi que dava para fazer instrumentos com material reciclável”, explica. “E lá, na ELT, precisa disso”, acrescenta.

Antes da pandemia de Covid-19 desembarcar no Brasil, Klein apenas mantinha em seus pensamentos a proposta de fabricar os instrumentos à ELT. Com a crise sanitária, Klein passou por crises fortes de ansiedade e depressão – ele já havia sido diagnosticado com a doença, mas ela chegou a patamares que ele nunca tinha sentido. Foi afastado por 45 dias das aulas no CEU Emef Professor Domingos Rubino, na Zona Leste de São Paulo, e seu médico disse para ele mudar o foco, pensar em algo diferente, em alguma coisa que lhe fizesse bem.

“Busquei no fundo do meu baú a minha ancestralidade”, diz. “Meu avô, no Rio Grande do Sul, fazia gamelas (uma espécie de tigela) e eu produzia chapéus de palha”, conta. A professora da ELT havia pedido para os alunos fazerem atividades sonoras em casa, pois as aulas seguem virtualmente. Ele juntou uma coisa com outra e passou a produzir. “Comecei a bater em um objeto, em casa. Olhei para a sucata que tinha aqui e comecei a transformar. Vi que tinha um artesão dentro de mim.”

A produção começou e hoje Klein conta com cerca de 20 peças. Os instrumentos transitam pelo universo percussivo. Se baseou em pesquisas que fez e nas teorias repassadas na ELT. Um delas é o bongô, feito com casca do ouriço da castanha da sapucaia. Fez também gonguê (comum no maracatu), aproveitando abafador de escapamento de veículo. “Reúso ecológico”, frisa. Tambor e berimbaus não ficam de fora de sua produção. Fez ainda caxixi à base da planta purunga e trançado de fios sintéticos recolhidos nas calçadas, “unindo cultura, artesanato e ecologia”.

“Tem um depósito de troncos aqui perto de casa, que recolhem quando caem nas ruas. Uso os de coqueiro por terem a fibra mais macia e é mais fácil de esculpir. Ando muito de bicicleta e recolho coisas que podem ser úteis”, detalha. “Cerca de 95% das coisas que usei nessas produções são de material de sucata”, afirma.

Klein argumenta que mergulhar nessa produção tem sido de grande importância, sobretudo nesse momento. “Me envolver com essa produção tem me feito bem. A cabeça se ocupa com coisa boa. É algo primordial.” Klein avisa que não pretende fazer instrumentos por encomenda. “Mas quando perceber que tem algum material sobrando aqui, daí faço algo.”

Quando a pandemia passar e a vida voltar de fato ao normal, já que não acredita nessa história de ‘novo normal’, mas sim na vida retomada com segurança, ele afirma que os instrumentos já têm destino certo. “Alguma coisa fica comigo e darei um instrumento para minha filha, que é cenógrafa. Uma parte vai para a ELT, outra para o CEU. Tenho muito a oferecer aos alunos.”




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