Cultura & Lazer Titulo
Um estilo vigoroso
Ricardo Lísias
Especial para o Diário
14/11/2006 | 21:04
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Com a recente morte de Juan Jose Saer, Ricardo Piglia tornou-se o principal escritor argentino vivo. Dono de um estilo vigoroso, além de produzir uma ficção inovadora, em sua obra a arte do ensaio atinge um patamar artístico tão elevado quanto os próprios romances e contos. A propósito, lançado no Brasil muito recentemente, O Último Leitor, uma coleção de textos iluminados de não-ficção, pode ser considerado como um dos melhores livros de ensaios escritos por um ficcionista nato.

No livro, Piglia traça o retrato de diversas imagens de leitura, sempre contextualizando e, do mesmo jeito, intervindo no que ele apresenta como “real”, ou para interpretá-lo, ou para transformar imagens solidificadas – o que, afinal de contas, é a mesma coisa. No texto mais notável do livro, Ernesto Guevara, Rastros de Leitura, o autor analisa uma foto do Che lendo sob uma árvore para, depois, percorrer sua trajetória de herói latino andarilho e, por fim, reler o retrato de seu corpo assassinado para observar que ele “morreu com dignidade, como o personagem de Jack London. Ou melhor, morreu com dignidade, como um personagem de um romance de educação perdido na história”.

A tradição argentina de fato sempre se aproveitou de questões históricas (e, mais ousadamente, geográficas) para constituir sua ficção. Exemplo maior disso é, sem dúvida nenhuma, Jorge Luis Borges. Não foi apenas o ensaísmo de Piglia que seguiu essa tradição.

Dinheiro Queimado, romance que se tornou famoso sobretudo por conta do filme que se inspirou na trama, parte da pesquisa que Piglia fez sobre um histórico roubo a um carro-forte para, aos poucos, transcrever o ambiente assolador do esconderijo das personagens e as relações que os bandidos desenvolvem em momentos de extrema tensão. No final, o livro narra um tiroteio com tal realismo e violência como poucas vezes a literatura soube fazer.

O livro mais importante de Ricardo Piglia, Respiração Artificial, foi publicado em 1980, ainda quando a Argentina vivia o terrível período da última ditadura militar, e foi imediatamente aclamado como um dos livros mais importantes da história literária do país.

Alternando diversos registros e tons diferentes, Respiração Artificial constrói uma espécie de painel delirante em que a própria constituição de um texto ficcional sofre intervenções da história. No entanto, mesmo dados a princípio verdadeiros terminam recontextualizados para criar um mundo em completo desarranjo, por exemplo no antológico encontro entre Franz Kafka e Adolf Hitler.

Obviamente, Piglia expõe o descontrole do próprio processo histórico: não há como manter a ordem diante de uma barbárie oficial e plenamente conhecida – como, aliás, foi o nazismo e a repressão política na América Latina. Recortar a história é, por assim dizer, construir um documento formal de seu próprio descaminho. Essa pode ser a chave mais importante da literatura de Ricardo Piglia.

No dia 18, então, os Seminários Avançados Sobre a Literatura Moderna Latino-Americana terão seu último encontro do ano enfocando a obra que é talvez a mais radical da região (e da literatura contemporânea universal).

Depois disso, para marcar o final dos três ciclos, receberemos em dezembro o escritor Rodolfo Fogwill, um dos principais nomes da literatura argentina contemporânea.

Ricardo Lísias, 31 anos, é mestre em Literatura e História pela Unicamp e doutor em Literatura Brasileira pela USP. É escritor, ensaísta e professor. Escreveu, entre outros títulos, os romances Cobertor de Estrelas (Rocco, 1999), Dos Nervos (Hedras, 2004) e Duas Praças (Globo, 2005).




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