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‘Precisa ter um mapa para orientar a Saúde’
Kelly Zucatelli
20/08/2018 | 07:25
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André Henriques/DGABC


O doutor David Uip, quando assumiu a Faculdade de Medicina do ABC, falou sobre a necessidade de qualificar a pesquisa dentro da instituição. O que pode detalhar sobre isso?
Quando se fala em qualificar, primeiramente devemos considerar que existe um histórico. Quando a faculdade foi criada, num primeiro momento vieram muitos professores da Santa Casa, de universidades e faculdades de Medicina. Embora esses professores fossem excelentes, a pesquisa não veio junto com eles para a casa. Quando abrimos a primeira pós-graduação, há uns 15 anos, mais ou menos, fomos trabalhando com a formação dos docentes, que faziam parte de uma segunda e terceira gerações dos que haviam fundado a faculdade. Foi nesse momento que instalamos a cultura da pesquisa, um processo que é lento, pois precisa de bons profissionais e a busca pelo fomento. Quando mando um pedido para a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo) a fim de conseguir recursos, a primeira coisa que olham é o currículo de quem fará a pesquisa, e se a pessoa não tem nada publicado nem liberam. Precisamos ter um corpo de pesquisadores que tenha capacitação tal que facilite esse tipo de financiamento. Nosso grande dilema é esse. Fiz minha graduação aqui (na Medicina ABC), e mestrado e doutorado na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e lembro que já fizemos muitas pesquisas com pacientes clínicos. Fomos pioneiros no Brasil nas cirurgias de laparoscopia e publicávamos muitas coisas das experiências clínicas.

Quais pesquisas precisam ser feitas no Grande ABC, prioritariamente?
Há uma deficiência em pesquisas sobre as doenças profissionais (acidentes de trabalho, questões ligadas a poluentes ambientais etc). Acho que ainda somos muito carentes nesses casos. O retorno de alguma doença na população é questão de Saúde pública, e há um desleixo por parte do governo com relação a não ser tão exigente nesse controle. O problema diz respeito às práticas de você avaliar os trabalhadores, doenças ocupacionais e ter um mapa, o que não temos. Obviamente, esse tipo de pesquisa não é feito, pois esbarra na dificuldade de serem patrocinadas, não existe interesse da indústria farmacêutica nem de gestores públicos.

Pode detalhar alguns dos principais empecilhos para a execução das pesquisas?
São algumas as dificuldades. A indústria farmacêutica, de modo geral, não tem esse interesse de investir no Brasil. Já os conselhos de ética nacional e internacional demoram para aprovar (as pesquisas). Recordo que enquanto a Espanha tinha acabado de recrutar pacientes para pesquisas de reprodução humana, nós ainda não tínhamos a aprovação do Conep (Conselho Nacional de Saúde). Existe grande dificuldade com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na liberação de medicamentos. Isso desestimula a pesquisa. Os laboratórios, quando fazem pesquisas, gastam bilhões de dólares. Em São Paulo, temos grande dificuldade nesse aspecto, porque dependemos da agência de financiamento da Fapesp, de onde vem a maior parte do recurso.

Como tem sido as conversas com os poderes públicos para parceria e realização desse trabalho? Possuem pesquisas feitas em parceria com a Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial)?
Na realidade, do ponto de vista teórico precisaria ter investimento de todos os níveis. O que acontece, em termos municipais, é que eles investem praticamente nada em pesquisa no sentido do município? Em Santo André, por exemplo, podemos ter questões de Saúde que são diferentes do resto do País, tipo de poluição ambiental diferente de uma cidade para outra. Para orientar o tipo de Saúde, precisa ter um mapa da Saúde, se tem muitos abortos, nascimentos com defeitos etc. Só se define como será o investimento a partir do momento que se consegue ter a concretização da pesquisa. Quando se tem isso, tem que pensar que tipo de profissional se deve ter. A partir daí, dá para provisionar o número de profissionais que vão trabalhar. Nos países desenvolvidos, isso é feito no dia a dia, porque cada lugar realiza o investimento. Inclusive, na minha área, a reprodução assistida é custeada.

E com as empresas privadas, como o setor farmacêutico e químico, tem avanços para a realização de pesquisas nos próximos tempos?
Na faculdade tem um setor de pesquisa clínica que vai em busca das indústrias farmacêuticas para fazermos parcerias, o que tem gerado muitos ganhos. Tem também a pós-graduação dividida em pesquisa e inovação, laboratório multiusuários, sequenciadores de última geração e autorização para um banco de células e tecidos, muito importante para vários tratamentos, principalmente os oncológicos. Hoje, se pensamos em fazer um estudo sobre melanoma, apanho tecidos e células nesse banco e faço a pesquisa. Temos isso aprovado, com diversas autorizações do Conep e já em funcionamento para o trabalho. Isso ajuda muito, pois se não existisse esse banco, todas as vezes que fôssemos fazer uma pesquisa teríamos que descartar o material coletado e, numa outra ocasião do mesmo trabalho, voltar a convocar pacientes para coletar amostras. Com o banco de células não precisamos convocar os pacientes. Já temos autorizado.

Como avaliar a ciência, tecnologia e inovação para a realização de pesquisas no Brasil?
Temos uma série de dificuldades quando se fala em equipamentos, por conta dos preços das tecnologias. Para não inviabilizar os estudos, existem parcerias, como as pesquisas com líquido folicular que fazemos junto com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), por exemplo. Em outros estudos, há com outras instituições, mas nem sempre é fácil essa ligação com outras universidades devido fatores como vaidade de pesquisadores, financiamento etc.

Fale sobre as pesquisas interessantes que já fez.
Ganhamos um prêmio de 300 mil euros proveniente de um estudo de avaliação de genes que estão envolvidos na resposta ovariana. Essa pesquisa foi realizada porque durante os tratamentos de fertilização, damos remédios para as pacientes e, em alguns casos, não causam os efeitos esperados para que elas produzam os óvulos. O estudo é para desvendar as razões dessa não produção. Começamos neste ano e vamos seguir por até dois anos na pesquisa. Outro estudo que estamos debruçados é baseado na informação de que no mundo 5% das mulheres entram na menopausa antes dos 35 anos. A partir desse dado, nossa ideia é tentar descobrir quem é que tem essa propensão e, a partir dos 20 anos, fazer o que for necessário de tratamento. Dizemos que a região tem uma demanda grande de mulheres para esse estudo, assim como em todo o Brasil.

Há problemas para encontrar profissionais qualificados para o centro de pesquisas da instituição?
É necessário um esforço enorme para a contratação de pesquisadores. Antigamente eram só docentes, a partir de algum concurso que fez ou a apresentação de uma aula. Hoje é de acordo com o currículo, o tipo de publicação que ele tem em revistas, que pesquisa publicou. A seleção é feita a partir de uma análise profunda de toda a produção dele (do pesquisador). Temos uns oito ou nove doutores que não têm obrigação de dar aula. A função é a concentração mesmo na pesquisa. Neste ano, fizemos algumas contratações desses profissionais para as áreas de dermatologia e neurologista, entre outras. A área clínica precisa muito de bons pesquisadores. Para ajudar nesse processo, estamos com um projeto para que durante a residência o profissional já inicie o mestrado, justamente para incentivar a área e ele adquirir experiência e vocação para atuar especificamente nesse setor, ajudando a resolver muitos problemas. Temos 700 alunos na graduação da Medicina e 80 fazendo iniciação científica. Queremos aumentar em mais 30%, pelo menos, a iniciação científica, promovendo assim a boa qualificação do aluno.

O que acha do reaparecimento de algumas doenças que já estariam erradicadas no Brasil? Falta melhorar a cobertura vacinal?
O Instituto Butantan tem expertise e o Brasil é um País de ponta nesse assunto. Voltamos na questão de que as pesquisas estão ligadas a custos. Devido a isso, algumas vão devagar e outras nem tanto. A vacina para HPV, por exemplo, evoluiu bastante e o retorno é muito bom. Algumas coisas são mais difíceis, como para o HIV, pois geralmente a doença tem mais em países subdesenvolvidos.

Em fevereiro, a lei 13.243 do marco legal da ciência, tecnologia e inovação, foi sancionada com o propósito de simplificar acordos de cooperação entre instituições públicas e privadas e a importação de insumos para pesquisas. A faculdade já está encaminhando alguma tratativa baseada nessa nova legislação?
Essa lei é fundamental. Quando pensamos em realizar uma pesquisa, levamos pelo menos entre dois e três anos para iniciá-la, pois precisamos antes ampliar o leque de financiadores. A indústria precisa participar. É obvio que temos áreas como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e a Embraer, que têm pesquisas de alto nível para alguns setores. Mas existem outras áreas que necessitam e não têm. Por isso, a necessidade sim de leis de incentivo.

A Prefeitura de Santo André fechou em junho parceria com a Faculdade de Medicina do ABC para tratamentos de doenças raras. Nos fale um pouco sobre esse projeto.
Essa história do tratamento de doenças raras começou em 2014. Na realidade, o governo federal lançou uma portaria para credenciamento de centros especializados e referências em doenças raras. Nós já tínhamos vários setores que trabalham com isso. Pneumologia, genética, tratamentos voltados para distrofia muscular, fibrose cística, talassemia, angiodema hereditário e doenças metabólicas, entre outras. Nesse leque de tratamentos e considerando que o Brasil tem mais de 5 milhões de pessoas afetadas com doenças desses tipos, o custo por paciente fica muito alto, chegando a R$ 100 mil por ano. Precisamos cuidar desses pacientes e a parceria ajuda a normatizar. Nos cadastramos junto com a Secretaria de Saúde, Consórcio Intermunicipal do Grande ABC e o Estado. Receberemos R$ 41 mil por mês, provenientes do governo federal, para custeio dos atendimentos.
 




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