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Abandonados, ex-moradores do
Edifício Di Thiene deixam clube

Prefeitura de São Caetano separou famílias e manteve munícipes em condição insalubre para forçar desocupação do espaço no bairro Fundação

Por Bia Moço
Do Diário do Grande ABC
14/08/2021 | 00:20
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André Henriques / DGABC


 Desamparados e pressionados pela Prefeitura de São Caetano, os últimos quatro ex-moradores do Edifício di Thiene que ainda resistiam ao abandono do poder municipal, e que estavam alojados no CRE (Clube Recreativo Esportivo) Fundação, decidiram deixar o local na noite de ontem para se juntar aos oito restantes que estavam dormindo na calçada do clube há dez dias.

Um dos motivos foi que em 5 de agosto a GCM (Guarda Civil Municipal) impediu 25 pessoas que estavam abrigadas no clube, e que saíram para cumprir compromissos pessoais, que retornassem para o abrigo, trancando os portões com cadeados e deixando quem havia permanecido no espaço, preso. Com isso, parte dos desabrigados ficou sem ter para onde ir e montou espécie de acampamento na calçada. Com os dias frios da última semana, a maioria deixou o espaço, sobretudo aqueles que tinham crianças, indo morar de favor na casa de parentes. 

Ontem a equipe do Diário esteve no local. As lonas improvisadas do lado de fora e cobertores doados não davam conta de conter a baixa temperatura e a garoa fina. O mau cheiro denunciava que, ali, as pessoas estavam vivendo em condições insalubres, tendo, inclusive, de improvisar um banheiro na boca de lobo, com cones e cobertores que vedavam o espaço. Colchões no chão e sofás estavam sendo usados como cama pelos oito resistentes que ficaram ali. Pelo portão do clube era possível visualizar os quatro ‘encarcerados’, além de cobertores, sacos de roupas, malas e pertences empilhados – a maioria de pessoas que nem estão mais na parte de dentro.

Segundo os moradores que seguiam no clube, a Prefeitura estava oprimindo e inibindo as pessoas, além de forçar a barra para que saíssem vencidos pelo cansaço, o que acabou acontecendo. “Não vamos sair porque a luta acabou, mas sim porque a situação está insustentável. A maioria já teve de ir embora porque não aguentou”, disse uma moradora que, justamente por medo de represália, não quis se identificar. “Na última semana saí para trabalhar e, quando voltei, não pude mais entrar. Mas minha filha, de 14 anos, estava lá dentro e não podia sair”, completou a ex-moradora do Di Thiene.

Outra família que ficou separada foi o casal Leonardo Pereira da Silva, 28, e Francy Rodrigues, 52. “Saí para trabalhar, sou doméstica, e quando voltei fiquei trancada para fora”, contou ela. “Sou autônomo, estou cheio de problemas para resolver e não podia sair daqui. Se fosse sair, a GCM nos obrigava a assinar termo de que estamos saindo por livre e espontânea vontade. Se não assinasse, não saia”, lamentou Leonardo. “Todo dia tínhamos duas ou três viaturas 24 horas nos vigiando. Na semana passada tinham sete viaturas. Não sei para que isso”, completou.

“Essa Prefeitura de São Caetano não vale nada, são desumanos. Não somos invasores, temos uma história e perdemos nossas casas não por nossa culpa”, afirmou Francisco do Nascimento, 40, que morou por 12 anos no Di Thiene.

As 102 famílias que ficaram desabrigadas depois que parte da estrutura do Edifício di Thiene ruiu, em junho de 2019, estavam alojadas no clube desde o início de junho, quando o juiz Thiago Elias Massad, de Santo André, atendeu a pedido de tutela antecipada da Defensoria Pública do Estado e determinou que a Prefeitura de São Caetano acolhesse os moradores, o que foi feito no clube, depois que o grupo invadiu o Cras (Centro de Referência de Assistência Social) Heloísa Pamplona, também no bairro Fundação.

A Prefeitura disse, por meio de nota, “que apenas quatro das 60 pessoas que invadiram o local em junho permaneciam abrigadas. As demais deixaram o espaço por livre e espontânea vontade, não retornando sequer para dormir”, o que não é verdade, de acordo com os relatos dos moradores. “Na noite de quarta-feira, equipe do SOS Cidadão 156 esteve no local para encaminhar as pessoas que permaneciam em frente ao clube para o abrigo municipal, no bairro Santa Maria. A ajuda, no entanto, foi recusada”, continuou a nota, que acusa os moradores de participarem de ato político. 

Tite deve responder por improbidade, diz advogado

Advogado especialista em direitos humanos e segurança pública, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, disse que a Prefeitura de São Caetano violou a dignidade das pessoas e o direito à moradia, ambos previstos na Constituição Federal. 

“O que está acontecendo no Di Thiene é inaceitável. Postura vergonhosa e indigna da Prefeitura. Os moradores deveriam continuar recebendo auxílio-aluguel e terem alojamento”, frisou o especialista.

Segundo Ariel, o fato de as pessoas saírem para trabalhar, estudar, se vacinar, comprar alimentos, ou qualquer outra atividade pessoal, e não poder voltar para o espaço “foi uma ação criminosa dos agentes públicos”. “E o Poder Judiciário tinha decidido que a Prefeitura deveria abrigar essas pessoas. O prefeito (Tite Campanella, Cidadania) também deveria responder por improbidade administrativa por descumprir a decisão judicial”, completou.

No caso da adolescente de 14 anos que ficou presa para o lado de dentro sem um responsável, Ariel destacou que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prevê o direito de convivência familiar, o que significa que a adolescente não poderia ser separada dos seus responsáveis legais. “O conselho tutelar e a promotoria da infância e juventude jamais poderiam permitir uma situação dessa. E a adolescente nem os adultos podem ficar trancados lá sob a ameaça de que se saírem não podem voltar. Isso contraria o direito de ir e vir, previsto na Constituição Federal, e pode configurar crime de cárcere privado”, disse o advogado. 

“O artigo 19 do ECA prevê que crianças e adolescentes devem ser criados e educados no seio de sua família. Os guardas e agentes da Prefeitura podem responder pelo crime previsto no ECA de submeter criança ou adolescente a constrangimento, do artigo 232, com pena de seis meses a dois anos, de prisão”, finalizou o advogado. 




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