Cultura & Lazer Titulo
Bom e velho Clint Eastwood está de volta
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
11/02/2005 | 12:22
Compartilhar notícia


Quer saber qual é o grande filme entre os cinco indicados ao Oscar deste ano, com cerimônia programada para o próximo dia 27? Menina de Ouro, de Clint Eastwood. Exatamente, menos de dois anos depois do inspirado/perturbador Sobre Meninos e Lobos, o cineasta e ator retorna às telas com uma obra indicada a sete estatuetas. Só Eastwood concorre a três: como produtor na de melhor filme, como diretor e como ator, pelo papel do treinador de boxe Frankie Dunn. E, nas categorias de interpretação, não é nenhum cavaleiro solitário; está reforçado pelos colegas de elenco Hilary Swank, altamente cotada entre as atrizes candidatas, e Morgan Freeman no segmento dos coadjuvantes. O filme estréia nesta sexta-feira em uma única sala da região (Extra Anchieta, em São Bernardo) e no circuito paulistano.

Muita gente vai considerar este filme uma guinada na carreira do Eastwood autor, em comparação ao anterior Sobre Meninos e Lobos. Não se deixe enganar, a história mudou, o gênero dos filmes aparentemente mudou, a recepção emocional do espectador também mudará. Mas o tom fotográfico, a alta elaboração da imagem rumo à simplicidade do enredo e as relações complexas entre os personagens permanecem os mesmos e instauram Menina de Ouro como um capítulo mais que coerente dentro da obra do criador de Os Imperdoáveis, atualmente aos 74 anos.

Frankie Dunn (Eastwood) é um treinador de boxe, proprietário de um pardieiro que, com um pouco de boa vontade, pode ser chamado de academia. Ele administra o local com a ajuda de Scrap (Freeman), ex-pugilista que perdeu a visão de um olho durante sua 109ª e derradeira luta.

Dunn, há anos empenhado em se corresponder com a filha que abandonou, adota uma cautela excessiva na preparação de seus pupilos para encaminhá-los às disputas de títulos. Mas as lutas são adiadas seguidamente, com o pretexto de seus lutadores ainda não estarem prontos para brigar pelo cinturão. Devido a essa teimosia, perde um pugilista prodígio, sua galinha dos ovos de ouro, para outro empresário.

É nesse panorama de perda e renitência que aparece Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), uma aspirante a pugilista de muito ímpeto e pouca técnica. Pede a Dunn que a prepare. O treinador recusa, mas o assistente Scrap, que mora na academia, dá uma forcinha por fora. Dunn finalmente cede e, na ausência da filha, afeiçoa-se de modo paternal à nova pupila.

Dito assim, parece o mais rasteiro exemplar de borra-maquiagem que freqüenta o Supercine das noites de sábado. Entretanto, Menina de Ouro é resultado de uma detida construção dos arquétipos que regem a sociedade norte-americana, dentro de uma estrutura que toca o melodrama, esse movimento de popularizar a tragédia para as massas, conforme já disse alguém.

O cineasta depôs certa vez que sua obra é apolítica, que não tem outro intuito que não o entretenimento. Engano pensar que Eastwood, com essa afirmação, pretenda fazer carreira de ilusionista como Fellini ou que deseje despistar o espectador. O fato é que as questões de ordem política e moral que seus filmes levantam estão diluídas em seus personagens como estão nas paisagens reais, às vezes imperceptíveis a olho nu. Tudo faz parte da ordem natural, ele não precisa apontar: “Olhe, aqui eu vou abordar o preconceito contra as mulheres!” ou “Olhe, acolá eu vou tratar da hipocrisia que persiste na democracia!”.

Menina de Ouro apresenta-se como uma briga entre conceitos seculares e a inevitável modernidade que despontam na organização de uma sociedade. Frankie Dunn, com a hesitação em preparar uma mulher para um esporte que “não foi feito para meninas”, representa uma instituição de mandamentos falida, fiada em dogmas que não se sustentam na prática – suas crenças caem por terra quando o lutador que ele não queria inscrever para o título vinga como campeão ao abandoná-lo. Até a segurança religiosa que pode governar uma democracia é questionada quando Dunn, ironicamente, acua o padre de sua paróquia com dúvidas sobre a existência (e a necessidade) de Deus.

Maggie, por sua vez, sintetiza o progresso e o reconhecimento de erros que se escoram exclusivamente em critérios inflexíveis como o preconceito. Representa a primeira infiltração nessa muralha de concreto que se diz tradição. Mas não há, em Eastwood, confronto sem ponderação. Enquanto os protagonistas duelam – e entendem-se – rumo à modernidade, o personagem de Morgan Freeman, ao aplicar um nocaute num insolente iniciante, ilumina as vitórias da tradição, débil por fora, densa por dentro.

Por isso, a escolha pelo melodrama em Menina de Ouro, explícito em maniqueísmos como a rival alemã e absolutamente má e a família arrivista de Maggie. Clint Eastwood trabalha com gêneros sedimentados, sem firulas pretensamente artísticas, para usá-los como painéis de exposição da fraqueza humana disfarçada de certeza, mas, sobretudo, do conhecimento dessa fraqueza – basta lembrar o final de Sobre Meninos e Lobos, por exemplo.

Emprega estruturas ancestrais, portanto de mais fácil assimilação, para encontrar o tempo e o mundo que o cercam, fazer-nos perceber preconceitos que dizemos não ter em prol do politicamente correto. A simplicidade narrativa aliada à bem-feita arquitetura estética, da fotografia e dos enquadramentos crepusculares, para investigar a complexa teia que é a vida, ainda mais problematizada quando em um ambiente de violência (o boxe, o velho Oeste, uma amizade maculada pela pedofilia). Assim é Eastwood. Até a próxima.



Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;