O sotaque não esconde as raízes mineiras. A fala mansa, camisa de botão meio aberta, mãos calejadas e chapéu de boiadeiro são sinais claros de que se trata de um homem do campo. Porém, para encontrar esse típico caipira não é preciso ir muito longe. A fazendinha do Seo Manoel, como é conhecido o aposentado Manoel Izidoro do Carmo, 63 anos, fica em área urbana de Santo André. O Rei do Gado do Grande ABC cria cerca de 100 vacas leiteiras no Jardim Santo André, bairro de periferia da cidade.

Quando começou a contar sobre sua vida, Seo Manoel logo avisou que o ‘dedinho de prosa' iria durar um bom tempo. "Minha história é longa e complicada." E ele tem razão. Com apenas 19 anos, veio da pequena Guaraciaba, localizada na Zona da Mata de Minas Gerais - que, na década de 1970, tinha cerca de 11 mil moradores - para tentar ganhar a vida na já cidade grande São Bernardo - que registrava aproximadamente 200 mil habitantes na época.

Com pouco estudo, a grande chance profissional apareceu aos 26 anos, quando foi procurar uma vaga na montadora Volkswagen, que há pouco tempo tinha se instalado na cidade. "Não fazia nem ideia de como era uma fábrica. Quando me perguntaram o que eu sabia fazer, respondi: sei capinar e cuidar de bicho", relembra. A sinceridade agradou e Seo Manoel foi contratado para tratar dos cães da raça pastor alemão que tomavam conta do terreno da empresa.

Dentro da multinacional, passou pelos setores de usinagem e hidráulica até chegar à manutenção, onde se deu bem e trabalhou por 37 anos. "Falaram que eu era muito inteligente para ficar só cuidando de cachorro. Foi uma vida inteira lá dentro. Quando saí, no meu registro tinha apenas duas faltas com atestado médico", diz, orgulhoso.

Em 1992, com 43 anos, Seo Manoel comprou um terreno no Jardim Santo André, que era, então, pouco habitado, e começou a dividir o trabalho de metalúrgico com o que mais gosta de fazer: cuidar de animais. "Mexer com bicho está no sangue. Vim de São Bernardo com uma cabeça de gado. Aqui, consegui montar minha criação."

Atualmente, o mineiro, que está aposentado há sete anos, possui cerca de 100 cabeças de gado da raça Gir Leiteiro. "São todas registradas e vacinadas a cada seis meses. Foram reproduzidas em laboratório, porque não tenho touro", explica.

Além dos bovinos, a fazendinha conta com 60 porcos e dezenas de galinhas. Seo Manoel nem parece viver na cidade grande. Às 6h, coloca a boiada para pastar no morro e depois tira leite das vacas. "Isso aqui é uma higiene mental."

VOLTA ÀS ORIGENS

A vida rural na cidade está com os dias contatos. Seo Manoel disse que está de malas prontas para Atibaia, no interior do Estado, onde arrendou um terreno para levar toda a criação. Ele espera voltar ao campo de vez até o fim do ano. "Aqui é ruim de trabalhar. Não dá para entrar com máquinas e faço tudo à mão. Lá será mais fácil."

Neto de apenas 3 anos é único herdeiro da boiada

Casada com Seo Manoel há 40 anos, dona Izolina Silva do Carmo, 59, faz queijo com o leite que é tirado das vacas todos os dias.Além dessa atribuição, a dona de casa cozinha para fora e ajuda a nora a cuidar do neto Enzo, de apenas 3 anos. O garoto é considerado o possível herdeiro da boiada.

"Ele foi a única criança da família que manifestou desejo em ficar no meio dos bichos. Se deixar, o Enzo passa o dia todo junto com as vacas. Nenhum dos meus dois filhos gostava disso, mas meu neto adora", diz a avó, orgulhosa.

O tamanho dos animais não assusta o menino. Quando a equipe do Diário foi conhecer a fazendinha, Enzo fez questão de colocar seu chapéu de peão e ir para junto dos animais com o avô. O garoto sorriu, posou para fotos e até montou em uma das vacas.

"Pelo jeito, isso tudo vai ficar para ele. Hoje em dia, é difícil ver uma criança da cidade se sentir tão bem no meio dos bichos. Quero ver o Enzo estudando para virar veterinário e cuidar de todo esse gado", sonha Seo Manoel.

Porém, a ida da família para Atibaia pode afastar o menino dos animais. "Meus filhos vão ficar. Vou rezar, se for da vontade de Deus, logo estarão perto da gente", diz dona Izolina.

Fazendinha é cercada de problemas sociais

A fazendinha de Seo Manoel é rodeada pelo gigantesco Jardim Santo André, bairro da cidade com dimensões generosas (1,5 milhão de metros quadrados) e grande população, mas que apresenta muitos problemas de desigualdade social.

O bairro é um dos loteamentos residenciais que acompanharam a expansão da mancha urbana de Santo André a partir da década de 1950, quando ocorreu a explosão industrial do Grande ABC.

Nos anos 1970, as ruas eram de terra, sem guias e sarjetas. Faltavam redes de água e esgoto, iluminação e parques infantis. "Vi esse lugar crescer. Quando cheguei aqui, era mato para todo o lado. Não tinha quase nada", garante o fazendeiro.

Atualmente, a área tem aproximadamente 28 mil habitantes, quase o triplo de moradores da cidade natal de Seo Manoel, Guaraciaba, em Minas Gerais. A grande maioria das moradias é irregular e o local é ponto de ações criminosas constantes.

A CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) está investindo cerca de R$ 400 milhões para urbanização do bairro, que é lembrado até hoje pela morte de Eloá Pimentel, assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Alves após aproximadamente 100 horas de cárcere privado, em 2008.