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Todo dia é dia de tapioca
Por Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
21/10/2006 | 19:07
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Trinta anos vivendo no Estado de São Paulo quase acabaram com o sotaque do nordestino José Moreira Bispo. Quase. Há três anos, ele resgatou a baianidade, questão de sobrevivência: virou vendedor de tapioca. Desde criança comia bejú, com côco dentro, ou manteiga de garrafa. Lá, é comida do dia-a-dia, que nem arroz-feijão por aqui.

“Se eu conto lá na terrinha que consigo viver de tapioca, o povo não acredita. Se me contassem, também não acreditava.”

Como vende tapioca o seu Moreira. Também pudera: só em Diadema, quase metade da população é nordestina. Com saudade “daquele” arroz-feijão. Ele não tem sossego, nem em dia de chuva. Na barraca montada na calçada do centro do Serraria, em Diadema, ele conhece a maioria dos clientes pelo nome. A freguesia se divide; uns o chamam de Moreira, outros, de Bispo – nome artístico dos tempos de crooner e de locutor de rádio.

A fila anda rápido; primeiro porque seu Moreira faz tapioca até no escuro, tamanha prática. Segundo: só há dois sabores para escolher, salgada, com manteiga, e doce, com leite condensado. Nas duas receitas vão côco ralado. A massa, de polvilho de mandioca, é generosa. O recheio chega a escorrer. “Aqui é sem miséria. Sei o quanto custa ganhar o R$ 1 que o cliente me paga pelo produto. Por isso, valorizo.”

Seu Moreira sabe, porque já não teve. A vida toda foi humilde, mesmo quando era cantor da noite. Deixou a cidade de Rio Real, Norte da Bahia, aos 20 anos. Saiu de lá artista; desde pequeno tocava triângulo e zabumba no forró com o pai, o seu Dédé. “Eu dormia no meio da festa. Mas continuava tocando. Os amigos do meu pai achavam graça. ‘Como é que esse rapaz consegue tocar dormindo?’” Seu Dedé fez de tudo para que ele ficasse. O dono do circo onde Moreira trabalhava também. Ofereceu salário em dobro, mas ele sonhava com São Paulo.

“Todo jovem nordestino pensa em ir pro sul. Para ganhar bastante dinheiro e voltar pra terra dele. Só que todo mundo sabe como é que essa história termina, né?” Desde que chegou em terra paulista, só foi a Rio Real três vezes. Seu Dedé leva a mesma vida, na lida da roça. Mas por essas bandas a vida engole, obriga. Moreira foi metalúrgico. Cantor da noite, trocou Gonzagão por Roberto Carlos e José Augusto, até parar de se apresentar em casas de show. Hoje, evangélico, ainda guarda os pôsteres de outrora. “Tenho carinho por essa época.”

Desempregado, depois de tentar a carreira no rádio e vendedor ambulante de bugigangas da 25 de Março – o dinheiro era tão curto que ele ia a pé de Santo André a Diadema –, Moreira seguiu o conselho de um irmão da igreja. Rápido se lembrou da mãe, com o bejú no forno a lenha do sítio. Pegou prática, e não parou mais.

Hoje, Moreira e mais 31 tapioqueiros trabalham em barraca padronizada, incentivados por um programa da Prefeitura de Diadema. Vende 110 tapiocas por dia, em média. Acorda às 5h, para “acarinhar” o polvilho, que vira a massa, que vira tapioca. À tarde vai para rua, empurrando o carrinho por uns 20 minutos, até o ponto de venda.

Moreira mora num quartinho simples, com a filha mais nova Camila, de 12. Tem outros cinco filhos, e três netos. Vive apertado, mas na bênção do senhor. Virou cozinheiro de mão cheia. E não reclama de nada. “Quem diria? Posso até comprar sandália pra minha menina. Vendendo arroz-feijão, pode?”




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