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‘Ser desenhista não é só diversão, é profissão’
Por Caroline Manchini
Especial para o Diário
26/04/2018 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


O sonho de infância se tornou realidade. Responsável por revitalizar nos quadrinhos os personagens Lanterna Verde e Aquaman, o são-bernardense Ivan dos Reis, 41, soma mais de 27 anos de carreira. Sua trajetória teve início aos 14, quando começou a trabalhar em revistas nacionais e, posteriormente, nos estúdios Mauricio de Sousa. Logo depois o artista decidiu se aventurar no mercado norte-americano, onde construiu carreira renomada, passando pelas maiores editoras de HQs, como Marvel, Dark Horse e DC Comics, onde trabalha atualmente.

Ser desenhista de histórias em quadrinhos sempre foi um sonho?
Sim. Eu não queria ser artista plástico ou coisa do tipo, sempre desejei me tornar, especificamente, desenhista de HQs e, por isso, nunca pensei numa segunda opção de carreira.

Quando e como o senhor percebeu que levava jeito para a coisa?
Como entrei em contato com o desenho muito cedo, não tive tempo para pensar sobre isso. Aos 14 anos comecei a trabalhar profissionalmente e as coisas foram se desenrolando naturalmente. Simplesmente aconteceu.

Em quais editoras o senhor já trabalhou?
No início da carreira profissional trabalhei em revistas fazendo histórias de terror e, aos 15 anos, fui para os estúdios Mauricio de Sousa, onde permaneci por três anos. Logo em seguida comecei no mercado norte-americano e passei por praticamente todas as editoras, das menores às mais conhecidas, como Marvel, Dark Horse, Chaos e DC Comics, onde estou trabalhando atualmente.

O que significa para o senhor trabalhar em uma das maiores editoras de HQs representando o Grande ABC?
É algo fantástico! O Ivan de 13 anos sonhava, mas não acreditava que isso seria possível um dia. Nunca imaginei que hoje estaria trabalhando na DC e, mais importante, que seria o artista responsável pelo título do Superman no período em que ele completa 80 anos. Só tenho a agradecer por isso, principalmente porque cresci tendo ligação emocional com os personagens, já que era fã e lia tudo. Hoje sou eu quem conta essas histórias para outra geração. Sinto-me realizado! Essa é a palavra certa.

Como é feita a comunicação entre o senhor e a DC, já que continua morando em São Bernardo?
Todo contato é feito por meio da internet. Na maioria das vezes nos comunicamos por e-mail e, quando preciso de resposta rápida, converso pelo WhatsApp. Nos casos de emergência ou assuntos mais detalhados usamos o telefone, mas é bem raro. O meu trabalho é algo mais isolado, entre eu e a prancheta, e não necessita de acompanhamento. Por isso desenho e mando para a DC o arquivo digital.

Como o senhor se preparou para conseguir chegar onde a maioria dos desenhistas sonha estar?
Fiz aulas de artes durante um ano, mas não tenho diploma artístico. Costumo dizer que minha grande escola foi no Mauricio de Sousa, onde conversei e convivi diariamente com os melhores profissionais da área, além de ter tido acesso, durante três anos, às bibliotecas. Aprendi muita coisa por lá, inclusive a ser profissional, uma das principais qualidades que um desenhista precisa ter. Sempre fui atrás do meu sonho, aproveitei todas as oportunidades que apareceram em meu caminho, pesquisei e estudei muito e, aos poucos, me transformei no profissional que sou. Aliás, acho muito importante dizer isso: ser desenhista não é só diversão, é profissão. E uma profissão com muitas responsabilidades, porque, mais do que produzir desenhos de qualidade, temos que construir uma imagem confiável. A DC, por exemplo, precisa confiar no meu trabalho e tenho que acreditar que eles vão me pagar. Confiança é a chave do negócio. Mas como você vai se preparar para isso? Não dá para dizer! Só a vida ensina mesmo.

O que o senhor considera ser o maior desafio de um desenhista?
Diria que o maior desafio é conseguir não deixar a vida social de lado. Desenhar demanda muito tempo e, por ser algo que gosto de fazer, me entrego, entro no mundo criativo e acabo esquecendo um pouco do social. Não é legal ficar isolado no estúdio, é preciso conversar com outras pessoas.

Quais personagens já desenhou e qual mais gostou de fazer?
Já fiz todos os personagens possíveis, porém, os que mais marcaram minha carreira foram a Lady Death, na qual trabalhei por cerca de cinco anos; Lanterna Verde e Aquaman, os quais ajudei a revitalizar. Não existe um preferido, porque cada um deles trouxe satisfação diferente. Com a Lady eu tinha ânimo e juventude criativa. No Lanterna Verde existia o desafio e, com o Aquaman, teve a satisfação da conquista rápida. Acho que cada um tem seu gostinho pessoal e sou muito apaixonado pelo processo de criação, não pelo personagem em si. Outro projeto muito importante que marcou minha carreira é o Blackest Nig, no Brasil chamado de A Noite Mais Densa, no qual desenhei uma minissérie de HQs, publicada pela DC Comics entre 2009 e 2010.

Qual técnica o senhor utiliza para traduzir os sentimentos deles na folha de papel?
Claro que existem técnicas e regras que você precisa aprender ao longo da carreira, mas vai muito da intuição e percepção. O primeiro passo é conversar com o roteirista para entender o que ele pretender passar com a história. Depois o que vai ajudar na criação é o repertório. Portanto, é fundamental ler, assistir a filmes, séries, documentários, novelas e tudo o que for possível visualmente. Perceber o mundo também é essencial. Dependendo da história gosto de ouvir trilhas sonoras, pois elas me ajudam a perceber o que estou sentindo. Com tudo isso, é possível começar a entender as emoções dos personagens para, posteriormente, retratá-las no papel.

Quanto tempo o senhor leva para desenhar cada página?
Pelo menos um dia de trabalho. Dependendo da página demoro de seis a dez horas para terminar. Esse tempo é o ideal, mas nem sempre é possível. Às vezes, não consigo fazer uma página por dia, então estou sempre correndo ou compensando de alguma forma para cumprir o prazo final.

Quem é a sua grande e verdadeira inspiração?
Tenho as principais referências que me acompanham na carreira, como John Buscema, Alan Davis, John Byrne e George Pérez. São artistas que influenciaram minha trajetória, ajudaram na minha formação e no meu processo de amadurecimento artístico.

O que mudou na sua vida depois que ganhou, em 2007, o prêmio de melhor desenhista pela revista ‘Wizard’?
Já ganhei outros prêmios, mas esse foi especial por conta da votação popular. Fiquei feliz pelo reconhecimento de um trabalho, mas não diria que mudou alguma coisa. Talvez tenha servido para me mostrar que estava no caminho certo, pois quem desenha não pode parar no tempo, precisa sempre mostrar ao público que o trabalho está evoluindo e melhorando. É uma superação atrás da outra.

Quais são as diferenças entre trabalhar com HQs nos mercados nacional e no internacional?
Não saberia responder porque estou fora do mercado nacional há mais de 20 anos. Quando trabalhava no Mauricio de Sousa a época era outra e as coisas funcionavam totalmente diferentes. Mas falando dessa experiência nacional, lembro que não tínhamos muitas opções, era tudo muito difícil. Para sobreviver do desenho era preciso trabalhar em dois lugares pelo menos. Hoje em dia enxergo que é possível produzir e vender os produtos nas grandes convenções que ocorrem no Brasil. Outra ferramenta que ajuda no processo é a internet, já que por meio dela você leva seu trabalho a milhares de pessoas. Eu vejo, acompanho, mas não vivencio as dificuldades de se fazer HQs no mercado nacional.

O senhor acha que o Grande ABC tem estrutura para formar grandes desenhistas?
Não só tem como já conta com grandes desenhistas. A região abriga, até onde sei, cerca de quatro artistas trabalhando no mercado norte- americano. O Luke Ross, Fábio Laguna, que faz histórias infantis, e o Manny Clark, que está no mercado europeu.

Como o senhor enxerga o mercado de HQs na região?
O que falta no mercado, em geral, é investimento. O público interessado é muito grande, ainda mais agora, com a mania dos filmes, que serviu como vitrine para os personagens. Porém, ainda depende muito do artista, que precisa trabalhar arduamente, se esforçar e ir atrás. Precisamos de investimento dos lados editorial e empresarial para expandir e estabilizar o mercado de histórias em quadrinhos.

O Diário conta com ilustradores na equipe de Redação, qual a importância desses profissionais nas redações?
É algo de extremo valor e faz toda a diferença para quem acompanha o jornal. O desenho é universal e se traduz para todos os públicos, sem distinção. A pessoa que não sabe ler ou interpretar um texto consegue observar a arte e entender o conteúdo, porque o desenho exemplifica de formas simples e lúdica.

O Diário ajudou de alguma forma no crescimento da sua carreira?
Sim. O jornal me ajudou a desmistificar a profissão e a mostrar que é um trabalho sério, como todos os outros. E mostrar isso é algo extremamente valioso, porque aumenta minha autoestima em relação ao que produzo e, por isso, sou muito grato ao jornal.

Acha que o Diário valoriza e contribui para o crescimento da Cultura local?
Claro que sim! Ao longo desses 60 anos, o Diário acompanhou toda rotina da região de forma que poucos veículos conseguiriam. Da mesma maneira que o jornal envelheceu com as cidades, os leitores cresceram e envelheceram com o jornal, e isso cria grande vínculo de confiança. No mundo de hoje, onde as notícias e veículos de comunicação são duvidosos, ter na região um jornal referência em credibilidade é muito bom. Tudo isso ajuda a moldar culturalmente o Grande ABC.

Quais são os projetos para o futuro?
Estou assumindo a revista do Superman e devo ficar como artista responsável pelos próximos anos. Isso é muito importante para mim, porque em 2018 o personagem completa 80 anos de existência.

Em sua opinião, as histórias em quadrinhos, além de divertir, têm como função quebrar preconceitos e chamar atenção para causas sociais?
Com certeza as HQs vão além da mera diversão. Elas servem para informar e ficam arquivadas como registro histórico. As tramas, mesmo que fictícias, colocam o dedo em algumas feridas, questionam assuntos relevantes e instigam o público a pensar e refletir sobre algumas questões. É importante saber que existem revistas para todas as faixas etárias, então podemos encontrar temas como os infantis, que costumam ser mais leves.

Ivan dos Reis

Ser desenhista não é tão fácil quanto parece. Mesmo com a ascensão das histórias em quadrinhos nos últimos anos, muitas pessoas ainda enxergam a profissão como diversão ou simplesmente hobby. Ivan acredita que o Diário foi fundamental para quebrar o tabu e mostrar ao público a importância desse trabalho. “O jornal acompanha minha carreira há muitos anos e me ajudou a desmistificar a profissão. Isso é algo extremamente valioso, porque aumenta minha autoestima em relação ao que produzo e, por isso, sou muito grato ao Diário.”
 




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