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Consumo e religiosidade mudam a Páscoa
Por Do Diário do Grande ABC
03/04/1999 | 15:32
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Do ponto de vista da doutrina crista, o domingo de Páscoa é a mais importante de todas as festas do calendário religioso. Mais do que o Natal e a Sexta-Feira da Paixao. A razao disso é clara. Para os doutrinadores, Cristo nao revelou que era salvador da humanidade no momento em que nasceu ou morreu como homem, mas, sim, quando ressurgiu dos mortos e confirmou sua divindade. A Páscoa, uma festa essencialmente católica, destina-se a festejar a vitória sobre a morte. Trata-se de uma festa tao relacionada à vida que os antigos cristaos a celebravam ao ar livre.

Mas o tempo, a religiosidade popular e os interesses comerciais mudaram a tradiçao. No Brasil, por exemplo, as celebraçoes relacionadas à morte de Cristo, na Sexta-Feira Santa têm mais apelo entre fiéis do que a Páscoa. E em todo o mundo cristao nenhuma festa é tao prestigiada quanto o Natal.

A Páscoa parece cada vez mais relacionada a ovos de chocolate, coelhinhos, brinquedos e feriados prolongados. Essa mudança preocupa a Igreja Católica, que vem tentando revalorizar a liturgia da ressurreiçao. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem feito recomendaçoes nesse sentido. Mas os resultados sao mínimos.

O arcebispo de Sao Paulo, o franciscano d. Cláudio Hummes, acredita que as razoes desse comportamento sao antigas. "Ao longo dos séculos a força do drama da paixao de Cristo causou tanto impacto que ganhou mais destaque na cultura religiosa", diz ele. "É provável que a dor evocada na Sexta-Feira Santa hoje tenha mais relaçao com a vida das pessoas numa sociedade tao violenta."

Na opiniao do bispo-auxiliar d. Angélico Sândalo Bernardino, a valorizaçao do sofrimento é resquício das tradiçoes religiosas medievais de Portugal e da Espanha. Por outro lado, segundo o bispo, o comércio tenta apropriar-se de todas as festas populares e religiosas para incentivar o consumo. "É um desserviço à sociedade", diz ele.

Nos bairros em que atua, na zona norte de Sao Paulo, d. Angélico estimula as celebraçoes da chamada vigília pascal, no sábado à noite. Nas primeiras horas do domingo, uma passeata de jovens sai pelas ruas da regiao anunciando que Cristo ressuscitou. "É a proclamaçao da vida, contra o ódio e o egoísmo."

Os católicos ligados à Renovaçao Carismática, que valorizam o aspecto festivo das celebraçoes, também tentam mudar o quadro. Um grupo deles tentou organizar uma missa campal no Parque do Ibirapuera, em Sao Paulo, neste domingo. Mas nao foram adiante porque a área nao pode ser emprestada para cultos de uma só denominaçao religiosa. A celebraçao teria de ser ecumênica.

Frei Betto, dominicano ligado às pastorais operárias e autor de vários livros, também vê com preocupaçao o avanço da cultura consumista. "Para estimular o consumo, utiliza-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos", escreveu num artigo publicado no jornal "O Sao Paulo", da arquidiocese.

Outra pista para entender o tema é que as sociedades se tornam cada vez menos vinculadas às Igrejas. Numa pesquisa realizada em 1994 nos Países Baixos, entre pessoas com terceiro grau, 66% revelaram que nao fazem parte de nenhuma Igreja. Estima-se que em 2010 o número passará de 75%.

Com tal afastamento, a festa da Páscoa, que foi apropriada de antigas festas pagas, pode ganhar novos significados. Nesse movimento, pode ser até que o hábito de presentar com ovos de chocolate se altere. Há um crescente número de pais que prefere oferecer brinquedos aos filhos. Segundo informaçoes da loja de brinquedos ZYX!, de Sao Paulo, as vendas nessa época registram um aumento de 30%.

Na quinta-feira à tarde, enquanto comprava roupas para seus quatros sobrinhos adolescentes num shopping da zona oeste de Sao Paulo, Maria Odete Ramos explicou que uma das razoes é relacionada a mudanças no comércio. "Presentear com ovos no domingo da Páscoa perdeu parte do encanto, porque agora você encontra esses ovos expostos em todos os pontos de comércio e com semanas de antecedência", diz ela. "É um bombardeio e meus sobrinhos começam a comer muito antes." Diante disso, ela tenta surpreendê-los com outros presentes, como roupas, embora mantenha paralelamente a tradiçao de comprar ovos.

A Igreja teme que ao longo do tempo a festa da Páscoa perca o significado original, de celebraçao da vida, e se transforme em mais um dia de troca de presentes.




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