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Ato de Fé traz visão dominicana da repressão
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
23/03/2005 | 12:43
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Assistir a Ato de Fé e não endereçar o pensamento até Aldo Fabrizi em Roma, Cidade Aberta (1946) é, como dizia aquela canção do Skank, improvável, impossível. O documentário do diretor Alexandre Rampazzo e da produtora Tatiana Polastri investiga a relação entre setores da Igreja e a resistência à ditadura militar vigente entre 1964 e 1985 no Brasil. E é com esse vídeo que a dupla de criadores, ele de São Caetano, ela de Mauá, foi selecionada para o É Tudo Verdade, principal festival do audiovisual documental no país, que neste ano ocorre entre os próximos dias 29 e 10 de abril em São Paulo, e de 31 a 10 de abril no Rio.

Foi surpresa a escalação de Ato de Fé para o É Tudo Verdade? “Mais ou menos”, afirma a produtora Tatiana, parceira na arte e na vida do diretor Rampazzo – estão noivos. “A gente tinha esperança de ser selecionado porque o Amir Labaki (diretor do festival) já tinha assistido ao vídeo e gostou muito. Ele chegou até a dizer que o filme é uma referência audiovisual sobre o período da ditadura”.

As mortes de Carlos Marighela e de frei Tito, o seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, a masmorra disfarçada de porão do Dops. Capítulos que as aulas e os livros já esmiuçaram. Mas em Ato de Fé estão apresentados a partir de perspectiva incomum e unitária: são os frades dominicanos que apoiaram os adversários do regime os narradores dos fatos.

Todo cristão é seguidor de um preso político, afirma um dos frades-personagens logo de saída, em alusão ao fato de Jesus Cristo ter sido sacrificado num jogo político. E a fé, naquele momento específico, não poderia estar desassociada da ação, conforme depoimento de outrem. E a ação dos dominicanos, nesse caso, consistia em dar guarida a guerrilheiros foragidos, providenciar fugas rumo ao exílio e coordenar logística e estratégias junto à cúpula da ALN (Ação Libertadora Nacional), o grupo de oposição liderado por Marighela. Sempre à distância da pólvora, evidentemente.

“A gente não se preocupou com estética. Quisemos passar para a linguagem do filme essa história, desconhecida por muita gente”, diz Tatiana. Embora a produtora acredite em Ato de Fé como obra puramente funcional, há uns instantes em que incide o sentimental, como a fala do frade que relata ter assistido a sessões de tortura de colegas, obrigado pelas forças repressoras, o que considera um flagelo maior que o físico. Em instantes assim é que o documentário de Rampazzo traz à memória o personagem de Aldo Fabrizi no clássico neo-realista de Roberto Rosselini, um padre submetido pelos nazistas a testemunhar atos de brutalidade contra presos políticos. Em instantes assim é que se percebe os amparos da ficção e os desamparos da realidade histórica.

Ato de Fé germinou como um trabalho de conclusão de curso do casal no Imes (Centro Universitário Municipal de São Caetano), e desenvolveu-se depois como obra mais completa e extensa por força do apoio da rede Sesc-Senac. A base foi a leitura de Batismo de Sangue, livro do mesmo Frei Betto que é testemunha insubstituível no documentário cujo título, que poderia ter sido Rota dos Dominicanos ou Operação Bata Branca, vem da declaração da historiadora Maria Aparecida Aquino, para quem a resistência é um ato de fé, o ímpeto para dizer não quando todos dizem sim.

Essa militância no documentário político ainda vai render pano para manga. Alexandre Rampazzo participará de um debate sobre o tema dentro da programação do É Tudo Verdade, em 8 de abril, e o casal já inicia pesquisas para dois outros projetos: um curta sobre a tumultuada final do Festival da Música Brasileira da Record, em 1966, e um filme sobre trabalho escravo no Brasil. Ao que tudo indica, eis aí dois especialistas em cutucar vespeiros.

Ato de Fé – Documentário de Alexandre Rampazzo. Exibição no É Tudo Verdade: dia 2 de abril, às 18h30, no Centro Cultural Banco do Brasil – r. Álvares Penteado, 112, São Paulo. Tel.: 3113-3651. Debate com o diretor, sobre documentário político, dia 8 de abril, às 18h30, no Museu da Imagem e do Som – av. Europa, 158, São Paulo. Tel.: 3088-0896. Entrada franca.



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