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João Marcello Bôscoli: 'ser do contra é mais gostoso'
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
23/02/2002 | 17:07
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  Medidas todas as proporções, a Trama é o Davi do mercado fonográfico brasileiro. Em 2002, a gravadora já começa a botar as manguinhas de fora e a preparar a atiradeira para se posicionar em um dos pólos da rinha que continuará a travar com os inúmeros Golias do segmento – leia-se as majors, grandes gravadoras consolidadas há anos no negócio dos CDs. Pelo trotar dos projetos, os discos de acetato estão para ganhar uma série de primos suplementares, já que a adoção de estratégias agressivas na distribuição de músicas na internet e na exploração do mercado de DVDs está em ebulição dentro da gravadora.

Fundada em novembro de 1998, a Trama evolui rápido. Deixou de atender pela designação de gravadora para ser renomeada como holding de entretenimento do grupo Vale Refeição. É a prova de que seus sócios-fundadores unem a fome à vontade de comer – com o perdão do trocadilho. Ah, sim! E quanto aos donos desse herói da resistência fonográfica?

São eles o músico e produtor João Marcello Bôscoli, 31 anos, e os irmãos André e Cláudio Szajman, estes integrantes da diretoria do grupo VR, escaldado no mercado de benefícios ao trabalhador. “Há uma tendência a mitificar a gente por aí”, diz Bôscoli. “Todo mundo acha que eu sou o cabeludo maluco, que entende tudo de música, mas não está nem aí para a administração do negócio. E acham também que o André é o cara sisudo, que perde os cabelos na frente da calculadora. Não é bem assim.”

A bronca de Bôscoli – filho da cantora Elis Regina e do músico Ronaldo Bôscoli – clama a herança cultural de seus sócios, ambos filhos de Abram Szajman, presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e principal incentivador da malha de logística e infra-estrutura artística do Sesc. “O pessoal respira cultura. Na primeira vez em que fui na casa deles as paredes estavam repletas de obras de arte das mais importantes e um monte de discos e livros raros. Foi lá que eu conheci Anita Malfatti.” Nos corredores, Malfatti e outras preciosidades. Na garagem, contudo, nada de Mercedez-Bens ou Ferraris. “Eles tinham um Del-Rey, longe do seu melhor estado de conservação.”

Desfeitos os estereótipos, é hora de preto no branco. Bôscoli e Szajman rimam êxito financeiro com a franca liberdade de expressão de seus contratados, uma verdadeira liga da justiça musical, que elenca achados como Otto, Max de Castro, Rappin Hood, Jair Rodrigues, Leci Brandão, Tom Zé e Noite Ilustrada. Turma responsável pela evolução da Trama, que, em seus três anos de existência, já vendeu 2 milhões de discos e estima um faturamemto de R$ 30 milhões para este ano, em plena entressafra fonográfica.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Bôscoli concedeu ao Diário e na qual fala sobre grana, sobre o assassinato da música brasileira, os artistas que sua gravadora apadrinha, as debandadas do rapper Xis e da cantora Luciana Mello para as majors e sobre o significado da afiliação atribuída a gente famosa:

DIÁRIO – Pirataria e a queda nas vendas chicotearam a indústria fonográfica no ano passado, quando foi visto um decréscimo assustador nos faturamentos das gravadoras. Como a Trama encara esse possível panorama de recessão?
JOÃO MARCELLO BÔSCOLI – É claro que isso me aflige na condição de presidente de uma gravadora. Mas, antes de ser dono de gravadora, eu sou brasileiro, e isso me preocupa mais ainda. É o meu lado cidadão que não vê com bons olhos o crescente endividamento externo do Brasil. É na condição de cidadão que eu sinto vergonha de ouvir as considerações errôneas de europeus e norte-americanos. Eles acham que aqui virou terra de ninguém.

DIÁRIO – Além de ameaçar o Bôscoli cidadão, tudo isso também preocupa o Bôscoli empresário?
BÔSCOLI – Sem dúvida. São crises e mais crises, como a vivida pelas gravadoras em 2001, quando houve uma retração no mercado de quase 50%. Não dá para ignorar uma queda dessas. Mas, no comando da Trama, eu e o André somos muito bem assessorados e estamos procurando fazer de tudo para não estacionar. Temos três anos de gravadora e, até agora, só registramos crescimento em nossa empresa. Em 1999 (primeiro ano de atividades da Trama), nós vendemos 315 mil cópias; no ano seguinte, pulamos para 650 mil discos vendidos; e, no ano passado, conseguimos estabelecer uma marca de mais de 990 mil cópias. Nesses três anos, nossos investimentos somaram R$ 15 milhões. A crise é um alerta para nós, e não podemos adotar uma postura situacionista. Estimamos que neste ano, ultrapassaremos a marca de 1,5 milhão de discos comercializados, e um faturamento de R$ 30 milhões. Nosso catálogo hoje conta com cerca de 500 títulos, ou seja, nós gravamos um álbum a cada três dias nos últimos três anos.

DIÁRIO – Apesar do crescimento evidente, esses números são pequenos se comparados às grandes gravadoras.
BÔSCOLI – Os planos da Trama não são de ser a maior gravadora, mas a melhor. O faturamento de toda a indústria fonográfica do país soma hoje R$ 800 milhões, número pequeno para os mercados externos. Nós não pretendemos nadar em rios de dinheiro, somos pacientes e gostamos de investir nos nossos artistas. Na nossa folha de pagamento há produtores e músicos extremamente competentes, e eu não pretendo pressioná-los para fazerem discos com potencial de ganhar discos de ouro e de platina. A gente não vende plástico: o nosso produto é propriedade intelectual. Ser do contra é muito mais gostoso.

DIÁRIO – O alto faturamento dessa indústria fonográfica se deve, muitas vezes, ao assassinato da música brasileira, e a perseguição de modismos e de gêneros muitas vezes efêmeros. Será possível reequacionar isso um dia?
BÔSCOLI – Não vamos confundir as coisas. Essa história de que só música ruim vende disco é coisa de fascista. Quem é o artista que mais vendeu discos nas últimas décadas? Roberto Carlos. Quem foi a primeira cantora a vender 1 milhão de cópias no Brasil? Elis Regina. Caetano Veloso demorou 16 anos para ganhar um disco de ouro e só porque o cara não vende essas maravilhas, eu vou dizer que o cara é ruim? Não! Existe, porém, uma tendência no Brasil e no mundo seguida pelas gravadoras. Se o iê-iê-iê está em evidência, elas contratam 40 bandas de iê-iê-iê e jogam todas no mercado, contando com o sucesso de uma ou duas delas. A Trama não compra árvore de papelão; a gente planta, rega e tem paciência para colher os frutos quando eles estiverem realmente maduros.

DIÁRIO – E a colheita tem sido lucrativa?
BÔSCOLI – O Pedro Mariano, com um único disco (Voz no Ouvido), já conquistou indicações para quatro Grammy. Max de Castro saiu há pouco tempo em uma reportagem da revista Time e, depois disso, seu disco (Samba Raro) chegou a vender 10 mil exemplares em 40 dias nos Estados Unidos. Isso detona a idéia de que é muito difícil dar certo sem abrir mão de seu código de ética.

DIÁRIO – Isso, de alguma forma, desperta a atenção das majors?
BÔSCOLI – Pois é, nós não somos recebidos com beijos e abraços porque a nossa conduta bate de frente com modelos que estão aí há muito tempo e não vão querer largar o pão de jeito nenhum.

DIÁRIO – Mesmo assim, a Trama perdeu a Luciana Mello (recém-contratada pela Universal) e o rapper Xis (que assinou com a Warner).
BÔSCOLI – Muito pelo contrário, nós ganhamos a Luciana Mello e o Xis. No caso da Luciana, nós seremos sócios dela nos próximos dois discos que ela gravar, e é gente da Trama que participará de todo o processo de gravação e produção. Quanto ao Xis, ele era dono do próprio selo, o 4P. Ele estava dentro do nosso segmento de rap, mas a Trama só participava do processo de distribuição do disco dele e o colocou nas mídias nas quais ele ainda não estava. A ida deles para outras gravadoras é uma recompensa, é a certeza do bom trabalho feito. Não estamos aqui para inventar ou destruir carreiras. Aqui o artista é livre. L-I-V-R-E.




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