Cultura & Lazer Titulo
Crítico, sim. Cricri, nunca
João Marcos Coelho
Especial para o Diário
06/07/2007 | 07:02
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O bom jornalista cultural é aquele que consegue levar os leitores a compartilhar suas preferências. Na música isso fica ainda mais complicado, já que como dizia alguém de quem não me lembro agora o nome, escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura. Ou seja, é missão impossível, sempre.

Por isso cada jornalista que atua em qualquer um dos mundos da música acaba fazendo um trabalho muito pessoal. E aí está a razão do sucesso de alguns raros e do fracasso da grande maioria que se propõe a escrever sobre música. Pois não se trata de alardear preferências assim gratuitamente – mas passar aos leitores as informações básicas de modo tão interessante e rigoroso quanto os comentários musicais propriamente ditos.

A melhor crítica, resenha ou perfil de um músico – seja ele intérprete, compositor, arranjador ou maestro – é contagiar o leitor, fazê-lo correr até uma loja e degustar a gravação. É o que tem feito, nas últimas quatro décadas, um dos mais talentosos jornalistas-escritores da área musical.

Falo do Ruy Castro, com quem compartilhei muitas noitadas raras no bar 150 do Maksoud Plaza Hotel, vinte e tantos anos atrás. Saboreamos maravilhados Alberta Hunter, Bobby Short, Earl Hines e tantos outros gigantes da música norte-americana. É dele, aliás, a melhor definição que já ouvi de Tom Jobim. Aconteceu assim: assistíamos ao show de mais de três horas do pianista, cantor, compositor de trilhas sonoras, jazzman etc. Michel Legrand, quando Ruy saiu-se com essa: “Tom Jobim é o Michel Legrand cansado”. Na mosca. Tom não tinha paciência nem disciplina para vôos mais ambiciosos – preferia faturar com showzinhos meia-boca, mal ensaiados. Mas tinha gênio tão grande – ou maior até – do que o empenhado Legrand.

Toda essa conversa serve de introdução ao recém-lançado livro Tempestade de Ritmos (Companhia das Letras, 424 págs., R$ 50, em média), com uma seleta dos artigos de Ruy Castro publicados nos últimos quarenta anos sobre jazz e música popular no século XX. São 58 textos que já eram excepcionais no momento em que foram publicados em jornais e revistas. E agora, retrabalhados e fundidos em novas formas pelo próprio Ruy, soam como música melhor ainda aos ouvidos mais afinados.

No Brasil, não conheço ninguém melhor do que ele para construir aquelas frases típicas do melhor jornalismo norte-americano – como “você compraria um boi usado do Renan Calheiros?”, um exemplo fictício que li em algum lugar nos últimos dias –, só que aplicadas ao mundo cultural. Um exemplo concreto pescado no livro: “Miles (Davis) carregava um ego que não cabia num álbum triplo”.

São mais de 400 páginas, recheadas de ilustrações, fotos e documentação de época, divididas em algumas seções. Na primeira, Jazz – do lado da vida (ou da morte), fico com duas gemas: Bill Evans – o suicídio mais lento da História e Despindo Ellington para vestir Strayhorn. Na segunda, As vozes que dizem coisas, os magníficos O Sinatra negro – Johnny Hartman e Para que enxergar quando se é Ray Charles?.

Ele chama de “pulmões elétricos” a parte na qual examina alguns dos maiores jazzistas de instrumentos de sopro da história. Além dos mais conhecidos, como Benny Goodman e Harry James, chamo a atenção para um comovente artigo sobre Cab Calloway, que ele intitula “o rei do hi-de-ho”. Entre os cantores de saloon, destaque para o perfil de Bobby Short, sua alma gêmea (tenho a impressão de que se fosse um desses cantores de saloon, Ruy gostaria de reencarnar como Bobby Short).

Particularmente saboroso é o capítulo que agrupa perfis dos grandes criadores das canções que construíram a era de ouro da música norte-americana (Ruy, aliás, não se cansa de repetir que a boa música popular acabou quando Elvis gravou seu primeiro rock, em 1953, acho). São nomes dourados como Cole Porter (o preferido dele, claro), Noel Coward, Irving Berlin e os menos conhecidos Vincent Youmans e Hoagy Carmichael. Ruy engata em seguida nos “bebês da Broadway”, como Stephen Sondheim, Cy Coleman e Dorothy Fields. Não esquece as sensacionais trilhas sonoras de Henry Mancini e o talento de Woody Allen para atuar como um maravilhoso DJ nas trilhas de seus filmes.

Há lugar até – quem diria? – para o samba. Pois é, Ruy Castro não é só bossa nova. Ele excede também em perfis de cantores como Roberto Silva, do diamante negro Moacir Santos e de Chico Buarque.




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