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Ritual de passagem
Thiago Mariano
Do Diário do Grande ABC
01/11/2009 | 07:13
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No final dos anos 1960, sob a ferrenha repressão da ditadura militar e as novas experiências lisérgicas vividas pela juventude da época, os sonhos e os dramas de três jovens garotas lançam luz sobre os desafios de amadurecer em um mundo novo. Completamente diferente daquele em que nossos pais viveram.

É o que entra em debate no espetáculo teatral As Meninas, adaptação de Maria Adelaide Amaral do romance homônimo de Lygia Fagundes Telles, que está em cartaz no Teatro Eva Hertz, em São Paulo.

A adaptação, segundo Maria Adelaide, foi fácil pelas possibilidades dramatúrgicas que a obra de Lygia oferece. "O teatro é o poder da síntese. O que fiz, foi pinçar os momentos mais reveladores e dramáticos da história e das personagens", conta. Yara de Novaes, a diretora, que assina a direção, não suaviza o trabalho da dramaturga. "A pessoa tem que ser um gênio para conseguir condensar em uma peça um livro que tem um universo inteiro em 300 páginas."

Ambientado em São Paulo, o romance conta a história de três amigas que convivem em um pensionato de freiras. Uma é romântica e sonhadora, a outra, transgressora e revolucionária e a terceira, deslumbrada e viciada em drogas.

"A peça pega um rito de passagem dessas meninas, um momento delicadíssimo que é a transição para a vida adulta", diz Silvia Lourenço, que interpreta a rebelde Lia.

Calcada no universo feminino, o único homem em cena, Júlio Machado, interpreta três personagens que vivem em função delas. "A Lygia pediu para que eu fosse um ponto de força para essas mulheres."

Em cena, os recursos utilizados para personificar um universo literário cheio de fluxos de consciência prioriza o trabalho do ator. "São personagens que se presentificam além de sua cena, participando, em composição, nas cenas que originalmente não seriam as suas. Isso nada mais é do que uma atitude reverente ao romance, onde há mais de um narrador, mais de uma voz"

Envolvimento - A relação afetiva nascida entre a equipe teatral, Lygia e o livro, transformou a montagem num exercício de prazer. "Lygia é dessas artistas que estão na categoria conjunto da obra", conta Luciana Brites, que interpreta Ana Clara.

Sobre o pano de fundo da história, a censura e as drogas, os artistas são categóricos em evidenciar um serviço de utilidade pública na escrita de Lygia. "Ela escancara portas que as pessoas querem fechar, abre cortinas que todo mundo quer fechadas, e tudo isso através da reflexão e emoção, muito à flor da pele", comenta Tuna Duek, a Irmã Priscila.

As Meninas - Teatro. Teatro Eva Hertz da Livraria Cultura - Av. Paulista, 2073. Tel.: 3170-4059. Sáb., às 21h; dom., às 18h. Ingr.: R$ 40. Até 13 de dezembro.

Momento histórico é mais que cenário
As possibilidades dramatúrgicas às quais Maria Adelaide Amaral se refere, além do texto de Lygia, devem-se ao período vivido e recriado em As Meninas. "As ações das personagens resvalam para o momento histórico em que a trama se passa. Não apenas os fatos políticos, mas os hábitos e comportamentos", afirma a dramaturga.

De uma geração posterior a Lygia, Maria Adelaide também vivenciou o desbunde e a censura dos anos 1970, tema retratado em sua recente minissérie Queridos Amigos.

Esses acontecimentos foram catalisadores de uma nova ordem social. O amadurecimento, tema recorrente de As Meninas, motivou também a reflexão das intérpretes da trama. "Estamos na faixa dos 30 anos e assim como as garotas do livro, que estão nos 20, sentimos que estamos, ainda, começando a virar adultas", diz Silvia.

Para o psicólogo e professor da PUC-SP, Miguel Perosa, a adolescência tardia é uma realidade atual e muito justificada pelos eventos da década de 1970. "A necessidade de especialização, a manutenção por mais tempo na escola, a dificuldade de se encontrar um emprego, tudo isso faz com que objetivamente um adolescente permaneça mais tempo na casa dos pais, submetido às regras dos pais e dependente do seu dinheiro."

Pelo aspecto cultural, o especialista acredita que existe pressão para que o adolescente não projete o futuro. "Nada faz com que a pessoa seja autônoma, e existem conceitos que exigem que o jovem viva apenas o presente, apresentado como paradisíaco através do consumo."

A truculência do regime militar, as torturas e a censura também marcaram as gerações posteriores. "A anistia política é muito recente. A violência, a exclusão e o podamento há 30 anos eram lei", comenta a atriz Tuna Duek, que foi presa política no período ditatorial.

"Quem vive o presente busca o prazer e evita o sofrimento. Nenhum sofrimento é capaz de se transformar em sacrifício em nome de um projeto de futuro porque não há mais sonho coletivo ou individual que dê significado aos atos do presente. Apenas o prazer, imediato e episódico, sem perspectiva de continuidade. Esses foram os anos loucos de chumbo", finaliza Perosa. Algo que ainda ressoa.




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