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Acuados como nas coberturas de guerra
Por Paula Fontenelle
Do Diário do Grande ABC
15/08/2006 | 07:38
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O que nós, jornalistas, sentimos em situações de perigo extremo? E, mais ainda, o que nos leva à escolha da profissão? Essas foram algumas das perguntas que fiz a 18 correspondentes de guerra durante a elaboração do livro Iraque: a guerra pelas mentes, publicado em 2003. Claro que cobrir conflitos significa o ápice da carreira, mas até chegar lá, muitas decisões são tomadas, afinal, o jornalista sempre pode optar por setores mais leves, como cultura e esportes. Ao longo do caminho, pesa a ambição, a busca pela realização profissional, o nome reconhecido. Mas o que isso tem a ver com o que vem ocorrendo no Brasil? Infelizmente, muito. Porém, com diferenças marcantes.

O correspondente do canal de TV inglês ITV News, Bill Neely, levou alguns segundos para responder minha pergunta. Não sabia, de imediato, como definir a atração pelos campos de batalha. Com olhar firme, disse: “É na guerra que nos deparamos com os limites humanos. De um lado, o da crueldade; do outro, o da compaixão. Não encontraria isso em outro lugar”. Já Anton Antonowicz, veterano do tablóide inglês The Daily Mirror, desabafou com evidente sinceridade: “Não agüento mais, já cobri tantas guerras. Gostaria de nunca mais pisar num campo de batalha”. Talvez Anton exemplifique bem o fim de linha nessa carreira tão dolorosa.

O seqüestro do colega Guilherme Portanova e seu assistente Alexandre Calado tem me feito pensar bastante nas conversas que tive com os correspondentes internacionais. Particularmente, no Tom Newton Dunn, do Mirror. Jovem, era sua primeira cobertura de guerra, e o repórter estava visivelmente abalado. Falava compulsivamente, evitando o olho-no-olho. Defendia com ardor as tropas britânicas e dizia-se entediado com o cotidiano do jornalismo diário. Perguntei-lhe se o jornal oferecia acompanhamento psicológico – numa vã tentativa de mostrar que ele não estava bem –, mas ele garantia não precisar de ajuda.

Quando soube do seqüestro do Portanova, lembrei-me imediatamente do Tom. Mas é aqui que surge uma incontestável diferença entre os correspondentes e o repórter da Globo. Anton, Bill e Tom fizeram uma escolha. Eles optaram por uma situação de perigo; sabiam dos riscos que corriam; estavam em guerra. Portanova não. Ele exercia a profissão, e foi seqüestrado como tantos já foram em situações de conflito. O que muda a partir de agora? Essa é uma pergunta que todos nós, da mídia, precisamos fazer. O debate foi levantado em vários países após a guerra contra o Iraque. Todos os principais veículos de comunicação da Inglaterra reviram seus aparatos de segurança, inclusive a postura diante do governo que oferece proteção, mas compromete a imparcialidade da mídia.

E no Brasil? Que postura devemos tomar? O seqüestro do repórter da Globo abriu um precedente assustador, e não podemos – nem devemos – ignorar o fato. Nunca houve um caso de terrorismo expresso contra a imprensa num ambiente que não fosse de guerra. Todos nós lembramos dos rostos cobertos de integrantes do Al Qaeda fazendo exigências em troca da vida de jornalistas. O mesmo aconteceu no Brasil no último final de semana. É um momento crítico para a mídia que deve dar início a um debate maduro, coerente, de resultado. Não se trata de corporativismo, afinal, temos dado uma cobertura incessante aos atos criminosos dos quais São Paulo tem sido vítima nos últimos meses. Mas não dá para encarar o que ocorreu com o repórter como se fosse mais um ato qualquer. Não é. A mídia presta um serviço da maior relevância para a população, muitas vezes servindo como porta-voz da sociedade. A pergunta é simples: diante da evidente incompetência dos governos em controlar a situação, se nós da mídia, acuados pelo medo, nos silenciarmos, o que restará?

Paula Fontenelle, diretora de Redação e autora do livro Iraque: A guerra pelas mentes



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